E ele cita como exemplo justamente um dos diretores de “Renascer”, Walter Carvalho, que, há 30 anos, foi o responsável pela fotografia de vários longas-metragens. Entre eles “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis, um dos mais importantes filmes brasileiros da Retomada e, segundo Nachtergaele, “plantador definitivo do que vem a ser o melhor cinema brasileiro atual, que é o cinema pernambucano”. O ator, por sinal, não fazia novela há dez anos – a última havia sido “Saramandaia”, em 2013. “A gente fez ‘Amarelo Manga’ em película de 35 mm. Era um suicídio financeiro para o Cláudio e para a produção. E o Walter arrumou um jeito, a partir de uma câmera que tinham alugado, de transformar a janela para fazer cinemascope. Virou um épico, como os faroestes antigos”, registra o ator, que participou de uma roda de conversa no fim de semana, na Mostra de Cinema de Tiradentes, que está sendo realizada na cidade histórica até o dia 27/1. Numa sequência mais longa, sem cortes, a recomendação era não passar da primeira tentativa, já que a película era um material muito caro. “O Cláudio, meu amigo do peito, disse: ‘Ô, vê se não fica errando muito aí, porque a cena é muito comprida’. E eu respondi: ‘Vai sair de primeira’. A gente estava descobrindo como fazer cinema na Retomada, como modernizar o nosso cinema, no sentido bonito, e eu tive uma briga com o Walter Carvalho nessa cena porque eu virei de costas para a câmera. E ele falou para o Cláudio, como se eu não existisse: ‘Ué, ele vai ficar de costas?’”, lembra Nachtergaele. “Aí, virei para ele, ainda no personagem, e falei: ‘Ator não tem costas não, Walter Carvalho? Você está louca? Você acha que vou ficar de costas, morto? Vou ficar de costas, vivo. E além de tudo vai ter a faca batendo na minha jugular’. No fim das contas, toda vez que Walter dirige ou propõe uma cena, ele põe todo mundo de costas. Você vê cenas assim na novela ‘Pantanal’, quando Maria Marruá conversa com o marido, de costas. Graças a mim”, diverte-se. Surdo Após enaltecer as cores “de profunda brasilidade” de “Amarelo Manga”, uma novidade para um cinema dominado por tons pastéis, como forma de convencer o público de que era “deglutível”, Matheus Nachtergaele relembra outro episódio engraçado de sua carreira, na produção internacional “Zama” (2017), da argentina Lucrecia Martel – “uma das maiores diretoras do mundo, com uma obsessão delirante pela perfeição do quadro e uma certeza estonteante da função política que o cinema deve ter”, define. “Foi infernal fazer o ‘Zama’. Ela (a diretora) estava bem louca. Eu não falo espanhol bem e achava que, com o portunhol, iria me virar bem. A cena era em um pântano infernal, eu estava em cima de uma égua e a Lucrecia ficava num bote bem longe. No megafone, ela perguntou: ‘Eres zurdo?’. E eu respondi: ‘Não, Lucrecia, eu estou te ouvindo’. E ela perguntava de novo, de novo, até vir a assistente, com água até a cintura, fazendo a mesma pergunta. ‘Eu não sou surdo’”, recorda, aos risos. Nachtergaele explicou que a égua era difícil – tinha acabado de parir e estava longe do potro, informação à que ele só teve acesso depois de tentar entender por que o animal o odiava tanto, sempre empinando quando montava nele. “Na verdade, ‘zurdo’, em espanhol, quer dizer ‘canhoto’. Por causa da posição da câmera, ela queria que eu mudasse a mão, para que a filmasse segurando a rédea. E eu achando que ela estava me xingando de surdo. Para você ver como é cansativo filmar em outro país”, conta. Devoção a Lucélia Santos Matheus Nachtergaele não poupa elogios a colegas como Fernanda Montenegro, Dira Paes (“até hoje a única atriz amazônica que temos”) e Lucélia Santos. A última é uma grande referência para ele. “Dentro da gente ainda mora um bicho, que quer matar, que tem fome, que tem raiva, e a dramaturgia brasileira é muito pródiga em oferecer oportunidades para um ator transitar por isso tudo. Eu aprendi que isso podia ser feito, acreditem se quiser, assistindo à Lucélia Santos”. O ator a define como a sua “primeira professora de interpretação, uma atriz que o Brasil, por algum motivo, cancelou para sempre, mas que trazia dentro dela a santa mais pura, a menina mais linda de carinha portuguesa e a prostituta mais lazarenta possível”. Ele não pensou duas vezes antes de retribuir esses ensinamentos quando participou do elenco de “A Serpente” (2016), adaptação do texto homônimo de Nelson Rodrigues feita por Jura Capela. O enredo era sobre duas irmãs que se casam no mesmo dia. Nachtergaele, então, sugeriu Lucélia Santos para interpretar os dois papéis. “Foi incrível, porque a Lucélia não fazia cinema há quase duas décadas, e ela arrasou. Foi incrível vê-la ‘fazer’ Nelson Rodrigues. Com isso, eu pude devolver para ela o caminho que me deu sem saber. E, de brinde, ainda dei uns beijos bem gostosos na boca de Lucélia”, brinca. Assim como Lucélia Santos, que, no início da carreira, ficou marcada pelo papel da casta protagonista da novela “Escrava Isaura” (1976) e deu um giro de 180 graus com personagens como Luz del Fuego e Engraçadinha, Nachtergaele estava numa rota semelhante antes de “Amarelo Manga”. “Eu vinha fazendo no Cinema da Retomada muitos personagens nordestinos, de alguma maneira parecidos”, diz o ator, citando “O que É Isso, Companheiro?”, “Central do Brasil”, “Kenoma” e “O Auto da Compadecida”. Aliás, ele está na sequência de “O Auto”, prevista para chegar aos cinemas no fim do ano. “Eu estava ficando marcado com um tipo muito amistoso, muito amado. Eu estava no coração dos brasileiros como uma pessoa muito pouco perigosa. Quando o Cláudio me chamou, eu entendi que era a minha chance de fazer igual à Lucélia. Em ‘Bonitinha, Mas Ordinária’, ela era a recém-escrava Isaura e queria fazer para tirar um tipo da cabeça dos brasileiros, que era o de boa e pura. O Tunga (de ‘Amarelo Manga’) é o ‘Bonitinha, Mas Ordinária’ da minha vida”, analisa. O Auto da Compadecida 2 Matheus Nachtergaele observa que a verdade cênica não é a mesma da vida real. “Não me interessaria ser ator se a verdade cênica fosse a verdade da vida. Eu não gosto tanto da vida quanto eu gosto da cena. É um defeito meu. A vida é um pouco chata, um pouco triste. E, mesmo na alegria dela, eu acho comovente e patética. A cena é mais bonita. É onde eu tenho algum controle sobre o que está acontecendo, onde eu posso ter um olho crítico sobre o que está acontecendo. É onde eu posso, de certa maneira, ser o que eu gostaria de ser e não estar preso no que eu sou”, salienta. Ao ser perguntado sobre como um ator de teatro – meio que marca o início da carreira de Nachtergaele – pode vencer os estereótipos e se adequar à linguagem do cinema, ele diz que tem inveja de alguns atores sobre como eles conseguem “fazer tão naturalmente, tão sem esforço” essa transição. “Para mim, a cena sempre tem uma partitura, um pensamento em cima dela, palavra por palavra. Como eu vou movimentar o meu corpo. É um trabalho de artesão mesmo. A verdade, diante de uma lente, tem algo de forte, tem pessoas que a lente gosta”, compara. Ele ressalta que há atores maravilhosos que a lente aponta e, por mais que façam bem, alguma coisa não acontece. “Isso é inexplicável. Tem alguma coisa a ver como seus traços são fotografados. A lente exige algumas coisas diferentes na atuação. Não é só uma amenização. É também uma voltagem da verdade – ou da falsa verdade – que você tem que dar para que aquilo seja crível”, avalia. No caso dele, sublinha, a passagem para o cinema foi bastante natural, embora reforce que não se vê como um “naturalista calmo”, sendo improvável participar de um trabalho “realmente apaziguado”. O artista paulista lembrou de filmes que foram feitos sobre os efeitos de sua embriaguez, especialmente os de Cláudio Assis. Hoje está sem beber há dez anos – e o primeiro que marca essa fase abstêmia é “Big Jato”, do próprio diretor pernambucano. “Acho que é um grande trabalho de ator meu. Me emociona até me lembrar de como foi trabalhar com Cláudio estando tão diferente das outras vezes. Quando a gente bebe…