Vivi e Amelinha: a história do casal perseguido no Pelourinho dos anos 1930
Mulheres sofreram ataques da imprensa e da polícia e se tornaram “objeto” de pesquisa. Quase um século depois, história pode ajudar a revelar passado LGBTQIAPN+
Publicado em 13 de janeiro de 2024 às 05h00
Vivi e Amelinha
Crédito: Estácio de Lima em arte de Eduardo Bastos/CORREIO
“Há dois dias ninguém sossega nesta casa”, disse Vivi a Estácio de Lima, que estava de visita ao sobrado onde ela vivia na Rua da Oração, no Pelourinho. O médico notou as vidraças quebradas e portas trancadas. A moradora devia estar com medo. Era Salvador, 1931, e Vivi respondia socialmente por dois crimes: vestir trajes masculinos e namorar outra mulher, Amelinha. O imóvel do casal, no centro histórico, estava rodeado de curiosos, alguns deles criminosos que jogavam pedras contra as janelas do primeiro andar. A situação era aquela desde que a imprensa havia escancarado a vida de Vivi por Salvador, onde então viviam 70 mil pessoas — hoje, essa é a população apenas do bairro de Brotas.
A polícia também passou a perseguir o casal, sobretudo Vivi: queria obrigá-la a usar saias e vestidos, com base no Código Penal da época, que condenava quem “disfarça o sexo, tomando trajes impróprios dos seus”. A baiana protagonizou um enredo cercado de mistérios, mas que pode, quase um século depois, ajudar a alargar as narrativas sobre o passado LGBTQIAPN+ (sigla que designa pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans, travestis, intersexo, entre outras) na Bahia.
Vivi ou M.A.G: perseguida por imprensa e polícia nos anos 30
Crédito: Estácio de Lima
“[Vivi] achava um absurdo pretender proibir uso das roupas que quisesse. Desde que não havia indecência, era incompreensível a ordem que recebera para meter-se nas saias”, narra Estácio no livro “A Inversão Sexual Feminina”, publicado em 1934 e disponível no acervo online da biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Foi influenciado por europeus que pesquisavam gênero e sexualidade, sob uma perspectiva patologizante, que o médico pediu a um amigo delegado de Salvador que o colocasse em contato com Vivi. Os detalhes desta reportagem são resultado da pesquisa de Estácio, entrevistas a pesquisadores e consulta a arquivos públicos.
Em 1931, quando Estácio conheceu o casal de mulheres, Vivi tinha 19 anos, cabelos cortados rentes ao lado da cabeça, e desprezava roupas femininas. Era a terceira de sete filhos de um casal soteropolitano, mas vivia longe da família desde antes da maioridade. Já Amelinha, “morena de olhos oblíquos”, com idade entre os 22 e 24 anos, usava os cabelos na altura do ombro, vestidos e saias. O encontro entre elas e o médico, no sobrado da Rua da Oração, seria o primeiro de dezenas.
Salvador dos anos 30: entre o preconceito e a modernidade
A cidade de Salvador de quando Vivi e Amelinha se conheceram, em 1929, se restringia ao centro e ao Comércio. As mudanças urbanas se insinuavam. A antiga Catedral da Sé, a 400 metros de onde elas viviam, por exemplo, foi demolida em 1933 – no seu lugar, foi construído o monumento da Cruz Caída.
Pelourinho em 1937 ou antes, por Peter Fuss (1904-1978)
Crédito: Peter Fuss (1904-1978)
As mulheres ainda eram obrigadas a se curvar aos padrões católicos – um bom casamento era o destino esperado. Havia, é claro, distinções. Mulheres negras já estavam incorporadas ao mercado de trabalho, como trabalhadoras informais e domésticas. Já as mulheres da elite econômica baiana – uma elite branca – tinham tempo e oportunidade de se interessar por lutas como o direito ao voto e a participação das mulheres na vida social, explica Maria Amélia de Almeida em sua dissertação em Ciências Sociais na Ufba. A homossexualidade (na época chamada de sodomia), embora não fosse considerada crime desde 1830, era condenada socialmente. Hoje, 68 países ainda criminalizam gays e lésbicas, segundo a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais (Antra).
Até serem expostas pela cidade, Vivi e Amelinha viveram dois anos de relativa paz. O médico e escritor não explica como – nem quem – denunciou Vivi à polícia. Mas explica que ambas trabalhavam como prostitutas na região chamada de Sé. Ainda hoje, populações LGBT+ ainda encontram dificuldades de inserção no mercado formal de trabalho.