O jogo de tabuleiro é muito mais que um entretenimento analógico. Ele representa também memórias afetivas, principalmente para quem viveu num mundo sem smartphones e internet, lá pelas bandas dos anos 80 e 90. Após um dia intenso de praia nas férias na velha casa de veraneio da Ilha, jogar Banco Imobiliário, War ou Detetive à noite fazia parte da cultura dos baianos. Atualmente, enfiar a cara no celular ou levar o playstation para a casa de praia parecem ter transformado os jogos de tabuleiro em peças de museu, correto? Passe a vez para quem acha isto. Eles se adaptaram e continuam fazendo sucesso com jogos que podem custar mais de R$ 1 mil. Bem-vindo ao (novo) mundo dos “boardgames”.
É preciso pensar fora da caixa. Não estamos falando apenas de jogos clássicos que ainda resistem em algumas prateleiras nas lojas de brinquedo. Eles ainda possuem suas devidas importâncias, é motivo de briga entre fabricantes de brinquedos e tem muita gente que joga. Porém, o mercado se ampliou a tal ponto que invadir Vladvostock virou papo de principiante (ou de noob).
No último estudo sobre o tema, realizado pela Pesquisa Game Brasil em 2019, 28% dos brasileiros entrevistados ainda largam o console para se distraírem nos jogos de tabuleiro. Isso antes da pandemia, vale ressaltar. Somente este ano, segundo o portal Ludopedia, especialista no assunto, a previsão é que 275 novos boardgames sejam lançados no Brasil, contando com relançamentos e novas versões.
Eric e Karina transformaram a paixão pelos jogos de tabuleiro em renda. Eles são sócios do São Jogue (Marina) |
De um simples tabuleiro de xadrez aos jogos mais complexos, tem gosto pra tudo. Em dezembro do ano passado foi iniciada a pré-venda de um jogo inspirado no nosso país, batizado de Brazil: Imperial (com Z mesmo). Sem a necessidade dos tradicionais dados, o jogo é inspirado no período colonial do país, em que você escolhe personagens como D. Pedro II, tenta evoluir seu território e invadir o oponente. O curioso é que o mapa é modular, podendo ser montado de diversas formas, dependendo do modo que queira jogar. É o novo formato de tabuleiro conhecido como 4x: Explorar, extrair, expandir e exterminar. O preço que não é nada fácil: R$ 600.
O jogo Brazil: Imperial tem um tabuleiro modular, em que é possível mudar o cenário |
Você acha que isso é uma barreira? Pois saiba que a pré-venda está esgotada. A próxima remessa deve sair apenas no final deste mês. “Minha próxima compra será o Brazil. Os jogos de tabuleiro continuam com a mesma finalidade: divertir, não importa o jogo. Mas, se um dia você jogar um jogo de conquista mais complexo e com mecânicas modernas, dificilmente você terá saco para War”, desafiou o estudante Alexandre Oliveira, que tem pouco mais de 30 jogos em casa.
Para quem pretende entrar neste mundo, mantenha a calma antes de lançar os dados. Não adianta sair por aí comprando tabuleiros sem entender a primeira regra: é preciso ter alguém para jogar. O jogo de tabuleiro agrega, por isso raramente você encontra um com a possibilidade de brincar sozinho. Caso sua galera das antigas não queira reviver o passado, dá para encontrar novos jogadores em fóruns, principalmente no principal site nacional sobre o tema, o site Ludopédia, dedicado a tudo que envolve este universo, incluindo até ranking, dicas, tutoriais e encontros.
Em Salvador também há uma maneira de jogar, encontrar novos amigos e comer hambúrguer ao mesmo tempo. Com unidades no Shopping Bela Vista e Feira de Santana, a São Jogue é uma mistura de lanchonete com centro de jogos de tabuleiro, onde você paga uma taxa, pega uma mesa e come enquanto joga com sua galera, não necessariamente nesta ordem. São 500 jogos, dos mais tradicionais aos mais raros, onde você tem a possibilidade de experimentar o game antes de adquiri-lo. A São Jogue também funciona como uma espécie de locadora dos tempos de fita cassete e Super Nintendo. Dá para alugar um boardgames por 4 dias com preços que variam entre R$ 10 e R$ 55. Este serviço foi crucial para manter o negócio durante a pandemia.
“A ideia do São Jogue surgiu justamente do gosto que a gente já tinha pelos jogos de tabuleiro. É um mercado que começou a se desenvolver bastante, mas tem muitos desafios. Em tempos tecnológicos, o apelo do analógico é muito forte. No fundo as pessoas querem retomar esta conexão do olho no olho e saírem da tela”, disse a paulista Karina La Farina Nogueira Bispo, uma das sócias do São Jogue, que atualmente recebe uma média de 70 pessoas durante a semana e mais de 300, por dia, nos sábados, domingos e feriados. E o público não é de pessoas que querem matar a saudade dos tempos de War. A maioria tem entre 17 e 29 anos, segundo Karina. Portanto, jovens.
O desafio agora é chegar até as crianças. Para isso, é crucial uma ajudinha dos pais. “É preciso entender que a tecnologia faz parte desta geração e do mundo atual. As crianças já nascem com muitas telas, mas também podemos fornecer outros tipos de incentivos, como o jogo analógico. Se não mostrar, elas não consomem este conteúdo. A família precisa jogar junto”, completa Karina. Eva Serra testou esta dica e não se arrependeu. Durante o pico da pandemia, resolveu comprar um War para as filhas largarem o celular. Deu certo. “Elas adoram, na realidade virou alternativa para [largar] os eletrônicos. Elas amam jogar comigo, mas dizem que é ruim porque eu sempre ganho”, conta Eva.
A advogada e jornalista Marli Mateus uniu o útil ao agradável. “Ter filhos tem essas vantagens. Comprei o Banco Imobiliário para ele, mas na verdade estava realizando o sonho da criança que, na época, não teve o brinquedo desejado”, disse. Os jogos mais convencionais, como War e Banco Imobiliário, por exemplo, possuem preços que variam entre R$ 90 e R$ 130. Contudo, prepare o bolso se quiser se aprofundar nas versões mais complexas. Considerado o jogo mais cobiçado entre os boardgamers, o Gloomhaven, uma aventura medieval que muda de acordo com suas escolhas, custa R$ 1.211,31 na Amazon. Imagine este tabuleirinho pegando salitre nas férias de Itaparica…
Afinal, por que é tão caro? Ao contrário do Banco Imobiliário, fabricado em escala industrial, estes games analógicos mais modernos dependem da desenvoltura das suas editoras e autores. Lembra do Brazil: Imperial? A ideia foi produzir inicialmente um número pequeno de exemplares e fazer circular em grupos, fóruns e feiras. Quanto mais gente trocando figurinhas sobre o jogo, o interesse vai aumentando junto com a demanda. Só então o jogo é produzido numa escala maior.
O jogo Clash of Cultures custa mais de R$ 1 mil |
Outras maneiras são as editoras no Brasil, que atualmente são 30, garimpar novas produções em feiras internacionais e licenciar. O processo se torna semelhante a de um livro. O jogo é traduzido e reeditado aqui. A depender da demanda, o jogo para de ser fabricado, se tornando uma peça rara e cobiçada entre os gamers, movimentando o mercado. “Uma vez comprei um jogo por R$ 200. Ele parou de ser fabricado, ficou raro e vendi por R$ 600”, lembra Alexandre Oliveira, que inclusive já ganhou uma rifa no São Jogue no período da pandemia. Mesmo com um preço salgado, o setor cresce 3% ao ano, segundo a Associação Brasileira de Fabricantes de Brinquedos (Abrinq). Só em 2018, último ano em que foi estudado o mercado dos tabuleiros pela Abrinq, o Brasil movimentou R$ 700 milhões com o seguimento.
Este mercado inclusive rende briga entre duas potências na área de brinquedos. Jogos como Banco Imobiliário, Detetive e Jogo da Vida estão com os dias contados. A Estrela, que fabrica e vende estes produtos, licenciou jogos originais da fabricante Hasbro e fez suas adaptações. O BI, por exemplo, é uma versão brasileira de Monopoly. Porém, a Estrela deve mais de R$ 64 milhões em royalties para a empresa norte-americana, que já teve aval da justiça para tirar de circulação os jogos que se tornará, em breve, peça de colecionador ou uma versão pirata do original. Pelo menos por enquanto, estes analógicos ainda estão à venda nas lojas. A Hasbro, na verdade, pede a destruição das versões da Estrela, pois são concorrentes dos seus originais, que já estão no mercado nacional. Na Amazon, o Banco Imobiliário é o terceiro jogo mais vendido no site. O Monopoly é o 10º.
“Os jogos de tabuleiro, além de ser uma ferramenta incrível de diversão e cultura, agrega. Porém, é preciso democratizá-los. Sabemos o quanto é difícil que estes jogos sejam acessíveis para todos os públicos, pois o valor também pesa. Jogos como War e Banco Imobiliário iniciaram muita gente neste meio e esperamos que estas empresas assumam esta coisa de democratizar os jogos de tabuleiro. A Estrela foi uma destas empresas e acho uma pena essa briga toda com a Hasbro”, disse o soteropolitano Eric Bispo, fã dos boardgames e sócio do São Jogue.
Além de nostálgicos e repaginados, os jogos de tabuleiro sempre estiveram presentes na nossa história. Arqueólogos já encontraram peças de um tabuleiro na Turquia com mais de 5 mil anos de idade. Nos anos 40, um surto de poliomielite nos Estados Unidos isolou crianças em casa ou nos hospitais. Foi então que a professora primária Eleanor Abbott desenvolveu um jogo de tabuleiro chamado Candyland para entreter a criançada isolada. Foi sucesso instantâneo e até hoje o jogo vende, em média, 1 milhão de cópias no mundo. Nesta pandemia, o analógico ganhou ainda mais espaço em meio ao isolamento. Pelo visto os Jogos de Tabuleiro estão bem longe do fim. Sua vez!
Muito além do War. Experiente outros jogos de tabuleiro que são sucesso de público
Dito (R$ 249)
O objetivo é adivinhar a carta do oponente, por meio de mímicas, cantos e outros meios. As cartas são bem variadas, com figuras psicodélicas para dificultar o jogo.
Catan (entre R$ 175 e R$ 557, dependendo da versão)
Você precisa dominar a ilha de Catan, construindo estradas, vilas e cidades e ganhando recursos. Lembra jogos eletrônicos como Age Of Empires.
Brazil: Imperial (Pré-venda esgotada: R$ 600)
Um jogo nacional que retrata retrata o Brasil imperial. Com tabuleiro modular, é possível jogar com vários personagens históricos e participar de momentos marcantes de nossa história.
Golpe (R$ 63,90)
Este jogo lembra o filme Poderoso Chefão. O objetivo principal é dominar o jogo e transformar sua família na mandatária de tudo.
Pandemia (R$ 275)
É a arte imitando a vida. Resumindo, seu objetivo é evitar uma pandemia no mundo. Spoiler: não tem negacionista no tabuleiro.
Carcassona (R$ 249)
Este jogo se tornou um clássico. Você recria a região de Carcassonne, na França, povoando o lugar com seus bonequinhos de madeira.
Choque de Culturas (R$ 1.205)
Uma mistura de RPG com War, você evolui sua civilização medieval e domina todo o território. Não tem Dudinka no jogo para invadir…
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