Entre todas as capitais do país, Salvador, junto com Fortaleza, é a que tem o menor percentual de pessoas identificadas como homossexuais ou bissexuais. Isso porque, por aqui, só 35 mil soteropolitanos, que representam 1,5% dos moradores da cidade, se declaram como gays, lésbicas ou bissexuais. É isso, pelo menos, que aponta a primeira pesquisa do IBGE sobre orientação sexual no Brasil, divulgada nesta quarta-feira (25).
A pesquisa entrevistou pessoas com 18 anos ou mais nos quatro cantos da capital baiana. Mas, para Leandro Colling, professor da UFBA e pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS), o estudo está aquém do número real. Ele explica que, entre pesquisadores, há uma estimativa de que 10% da população seja LGBTQIA+, um percentual ainda inspirado no Relatório Kinsey, feito nos anos 1940, nos EUA.
“Eu considero que 1,5% é sim bem abaixo da realidade, mas digo isso não porque concorde completamente com o relatório Kinsey, mas porque é muito difícil fazer uma pesquisa sobre esse tema. Ela envolve muitos tabus, preconceitos, medos e também muito desconhecimento das próprias categorias, inclusive as mais conhecidas, como as de homossexual, heterossexual e bissexual”, explica Colling, ressaltando que muitos não sabem o que essas palavras significam ou até sabem e não gostam delas.
O presidente do Grupo Gay da Bahia (GGB), Marcelo Cerqueira, também acredita que a pesquisa está subdimensionada e aponta que o medo da violência e do preconceito estão entre as causas para o baixo percentual de pessoas que se autodeclaram LGBTs (leia entrevista no final da reportagem).
Insegurança constante
O cenário de insegurança apontado por Marcelo é evidenciado pelo relatório do GGB sobre as mortes violentas de pessoas LGBTQIA+ na Bahiaque concentra 10,2% das vítimas de todo o Brasil, com 32 dos 300 casos registrados no país em 2021. Destas, 12 mortes violentas aconteceram em Salvador, que lidera o ranking das cidades do Brasil onde mais LGBTs são mortos e que, segundo o relatório, é a capital mais insegura para quem se identifica com alguma letra da sigla.
Esses índices de violência impedem em muitos casos – e por muito tempo – a autodeclaração. Como foi para a artista Lívia Ferreira, 53 anos, que desde a adolescência se entende como uma mulher lésbica, mas só se assumiu aos 35 anos. Ainda atualmente, que está casada, Lívia relata que não se sente segura para demonstrar afeto, pegar na mão ou beijar sua companheira na maioria dos ambientes da cidade.
“Diante da realidade que vivenciei na minha infância, vendo pessoas falarem sobre um casal lésbico da minha rua com ódio, não quis aquilo para mim, tinha muito medo. Quando comecei a ver os números de mortes de pessoas LGBTQIA+, isso ficou mais forte. Hoje, declaro minha orientação, mas não beijo ou dou a mão pra minha companheira na rua. Principalmente, porque ela tem muito medo”, conta.
Um homem gay, que prefere não se identificar, também contou à reportagem um cotidiano de medo que vive nas ruas da capital baiana. Ele relatou que prefere ocupar espaços como a Casa Batekoo e Paulilo Paredão, já que se sente vulnerável a possíveis agressões em outros espaços populares da cidade.
“A segurança sempre foi uma questão no modo como me relaciono com Salvador. Ser gay na cidade mais perigosa para a comunidade LGBTQIA+ é muito desafiador. Expressar afeto em público pode custar a vida. Mesmo sendo resolvido com minha sexualidade, ficamos expostos ao julgamento das outras pessoas. Vivemos em um país democrático, mas nem todo mundo tem esse entendimento”, afirma.
Messias Mago, um gay assumido, prefere não demonstrar afeto publicamente por temer violência (Foto: Paula Fróes/CORREIO) |
Para o servidor público Messias Mago, 39, a situação não é diferente. Apesar de ser um homem gay assumido, prefere não demonstrar afeto publicamente quando está com alguém com quem mantém relacionamento. O motivo? Receio de ser agredido por um carinho, um beijo ou por andar de mãos dadas.
“Já deixei e ainda deixo de demonstrar afeto para manter a minha segurança. Eu não me sinto seguro nem em lugares que são considerados gay friendly [amigáveis para os gays, na tradução do inglês] como Rio Vermelho e Barra. Não me sinto à vontade de andar de mão dada. Isso não é porque me escondo, mas porque prefiro prezar pelo meu bem-estar”, justifica.
Aceitação e dependência
Mais do que pela proteção física, Messias teve que abdicar de quem era por muito tempo pela segurança econômica e aceitação familiar. No início da sua adolescência, já sabia de sua orientação sexual, mas só a revelou aos pais e familiares quando tinha 20 anos, vaga na faculdade e um emprego para se sustentar. Ele acredita que, além da segurança, essa é uma das razões para o baixo percentual de Salvador quando o assunto é a população homo e bissexual.
“Desde os meus 15 anos minha mãe perguntava e meu pai me ameaçava. Então, preferi mentir para que eles continuassem fazendo o papel de me prover como filho até que eu pudesse, mesmo que de forma mínima, me sustentar. Acho que muitos passam pelo mesmo”, opina ele, que ao se assumir, aos 20 anos, foi acolhido pelos pais.
Para Lívia, o medo de não ser aceita e perder apoio familiar também influenciou seu processo de declaração da sexualidade. Ela chegou a viver um relacionamento escondido antes de se assumir lésbica, coisa que para ela, por conta do racismo, foi ainda mais complicado.
“Ser lésbica já é difícil, ser uma lésbica negra aprofunda mais o processo. Aos 19 anos, conheci uma pessoa e, por dois anos, mantive um relacionamento às escondidas. Isso por medo mesmo de não ser aceita, respeitada. Fiquei 14 anos sem namorar até assumir minha sexualidade. Foi muito difícil chegar a esse lugar de pessoa que luta contra a LGBTfobia hoje”, conta ela, que preside a União Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais,Travestis, Transexuais e Intersexuais+ na Bahia (UNALGBT).
Importância da declaração
Leandro Colling afirma que a pesquisa do IBGE é um importante avanço no sentido de quantificação e que é preciso elogiar o órgão pela iniciativa, mas que também vale avançar e melhorar o modo como é feita a identificação da quantidade de pessoas LGBTQIA+ em Salvador e na Bahia.
“A declaração é importante para que tenhamos mais nitidez sobre o número de pessoas não-heterossexuais. Mas a pesquisa também precisa avançar e incluir as várias identidades de gênero. Nos últimos anos, as identidades travestis e transexuais deixaram de ser compreendidas como variações da homossexualidade e hoje são compreendidas como variações das identidades de gênero”, pontua.
Para as pessoas LGBTQIA+, o ato de se identificar também é necessário para a saúde mental. Lara Cannone, psicóloga e mestra em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (UFBA), diz que o processo [de declaração] é complicado porque a sexualidade no caso de alguém não-heterossexual vem com o estereótipo errôneo de que a pessoa é anormal, desviante, promíscua e outras características pejorativas.
Ela pondera, no entanto, que se os fatores que afetam a saúde mental ocorrem pelo fato da pessoa LGBTQIA+ entender que não pode se expressar do jeito que ela é, se declarar ainda é a melhor alternativa. “Poder se declarar e viver sem ter que esconder é uma forma de preservar a saúde mental e trazer para perto pessoas que realmente te aceitam, ter certeza que suas relações são verdadeiras e, além disso, viver sua identidade de maneira mais íntegra”, explica.
Jeová Batista, psicólogo e sexólogo, concorda com Lara sobre o valor da identidade na saúde mental. “Quando você consegue bancar ser quem você é, tem uma qualidade de vida muito melhor. Se isso não acontecer e não for possível se declarar, vai afetar questões associadas à imagem, autoestima e, por tabela, vai elevar os níveis de ansiedade. Está tudo junto”, completa.
Marcelo Cerqueira, ativista e presidente do GGB (Foto: Divulgação) |
ENTREVISTA: Marcelo Cerqueira
Professor de história, ativista e coordenador de políticas públicas LGBTQIA+, Marcelo Cerqueira está à frente do Grupo Gay da Bahia (GGB) há 20 anos. Por lidar com as diversas questões que envolvem a população LGBTQIAP+ há tanto tempo, ele não acredita que os dados da pesquisa do IBGE correspondam à realidade de Salvador. Entenda por quê:
Esse 1,5% apontado pela pesquisa do IBGE corresponde à população soteropolitana de homo e bissexuais?
A pesquisa não é uma fotografia real do número de gays, lésbicas e bissexuais em Salvador. No nosso ponto de vista, não corresponde à realidade por diversos motivos. Um deles é porque o IBGE escolhe apenas um representante e, se um pai, mãe ou líder que responder não tiver esse entendimento, não vai reconhecer essa população. É preciso encontrar outras maneiras de perguntas abertas, que obtenham uma análise mais realista e completa. Eu considero esse relatório falso.
Quais dados de entendidades como o GGB, por exemplo, mostram que esse recorte da pesquisa é irreal?
A última Parada Gay realizada aqui da Bahia, por exemplo, que está com uma média de participantes em torno de 800 e 900 mil pessoas no dia do evento em Salvador. Só aí é um número muito maior do que o que é colocado pela pesquisa do IBGE na capital e na Bahia como um todo.
O que pode ser motivo para essa baixa autodeclaração?
A insegurança influencia diretamente porque a LGBTfobia é muito presente e está estruturada na sociedade baiana. Ela não vai deixar de ser um componente daqui assim, de uma hora para a outra. […] Então, deve-se ter uma sensibilidade maior do recenseador quando for colocar essa pergunta, já que é algo sensível e envolve a vida de quem se declara.
*Com a orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro