Quilombos sofreram com isolamento imediatamente após o colapso no Córrego do Feijão, e, dois anos e meio depois da tragédia, deslocamento para o município permanece precário
Às 4h30, o despertador alerta Olizia dos Santos Braga, de 36 anos, para a hora de acordar. Lâmpadas começam a ser acesas antes do raiar do dia no imóvel térreo com largo quintal no quilombo Ribeirão, comunidade na área rural de Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte. A movimentação que sinaliza o início de mais uma jornada de 24 horas se repete em outras sessenta residências ali instaladas. O colapso da barragem do Córrego do Feijão, em 25 de janeiro de 2019, piorou os trajetos já precários entre o quilombo e o centro de Brumadinho. Deslocamentos tornaram-se mais conturbados, e a jornada dos moradores, que trabalham e estudam no município, mais fatigante que antes.
Contadora, Olizia concilia a rotina de mãe, dona de casa e estudante com as obrigações como liderança do quilombo Ribeirão. Em meio às responsabilidades diárias, é ela quem representa a comunidade junto à Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas). A assessoria técnica conduz a criação de um diagnóstico sobre os impactos sofridos pelos quilombolas de Brumadinho com o rompimento da barragem B1, tragédia que completa dois anos e meio no próximo domingo (25). O documento é necessário para que sejam ajuizadas ações de indenização contra a Vale.
À mineradora responsável pela catástrofe, moradores de quatro comunidades quilombolas – Sapé, Marinhos, Rodrigues e Ribeirão – pretendem solicitar reparação integral dos prejuízos sofridos, contemplando da produção de exames sobre a qualidade da água à melhoria do transporte público, afetado pelo acidente. Reivindicações visam também a construção de uma creche e a oferta de assistência à saúde nas comunidades.
Distância. O deslocamento entre os quilombos e a cidade de Brumadinho é a principal queixa da população atingida pelo colapso da barragem Córrego do Feijão. Para adultos e crianças, a jornada diária começa às madrugadas e se encerra apenas nas últimas horas do dia. O ônibus do município não acessa as vielas das comunidades, e a população é obrigada a deslocar-se para as entradas dos quatro territórios. “O pessoal aqui (no Ribeirão) acorda às 4h30 da manhã e chega depois de 22h, às vezes às 23h, porque é tudo lá em Brumadinho, né? Bancos, escolas, faculdades, trabalho… Então, hoje, é rotina acordar de madrugada para pegar o primeiro ônibus e repetir esse caminho diariamente”, narra Olizia.
O trajeto, portanto, começa a pé e varia de acordo com a localização das residências no interior dos quilombos – a duração mínima é de dez minutos de caminhada. Logo em seguida, nos ônibus, aqueles que seguem para Brumadinho enfrentam entre uma e duas horas de viagem. A distância de 26 KM entre o território quilombola e o centro do do município parece maior em decorrência da má qualidade da estrada: parte do percurso dá-se por terra com curvas sinuosas e trechos que não permitem a passagem de mais de um carro por vez. Ao todo, são cerca de quatro horas perdidas em trânsito.
“O maior impacto do rompimento para nós foi a locomoção. A viagem para Brumadinho é por um único caminho. Os outros são inviáveis. Com o colapso, alguns de nós precisaram descobrir caminhos por Moeda, Bonfim e até por Belo Horizonte”, descreve. De acordo com Olizia, por meses após o desastre, moradores dos quilombos perceberam-se obrigados a seguir trajetos pelo interior da mina do Córrego do Feijão. “Era um horror. Nós ficávamos olhando para baixo e víamos a lama. Era um medo terrível, uma sensação de lembrança constante da perda”.
Diagnóstico da assessoria técnica será usado para ajuizar reparação
Depois da conclusão do diagnóstico feito pela Aedas, prevista para acontecer ainda em 2021, as quatro comunidades quilombolas pretendem ajuizar ações de reparação. Em relação à mobilidade, lideranças pedem a construção de acessos terrestres para as quatro comunidades, bem como a edificação de uma nova estrada que as conecte a Brumadinho. Moradores também demandam melhorias no transporte escolar para as crianças e aumento da frota dos transportes públicos.
Segundo o protocolo de consulta elaborado pelas comunidades em parceria com a Associação Estadual, a infraestrutura das comunidades tornou-se mais precária com o rompimento. “Além do impacto humano e ambiental, fomos afetados psicologicamente. Depois do rompimento minha filha pedia que eu não fosse trabalhar. É um medo que não passa, e não vai passar nunca. O que nós queremos com a reparação é que nossas comunidades tenham acesso a serviços básicos que, hoje, estão restritos ao centro de Brumadinho”, narra Olizia.
Quilombolas reivindicam a produção de exames sobre a qualidade da água, acompanhamento técnico para recuperação do solo usado para plantio, adoção de medidas de reparação para quem teve dificuldades de acesso à educação pelo rompimento e construção de um centro de assistência psicológica, entre outras medidas.
Indenização. A Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas) foi eleita pelos próprios atingidos pela tragédia da Vale para elaboração do diagnóstico que será apresentado à Justiça como forma de garantir indenização pelos danos provocados pelo colapso da barragem I, como esclarece o advogado Lucas Vieira, que é coordenador territorial da organização.
“O objetivo é traçar um panorama de todos os impactos decorrentes do rompimento. Nós não somos responsáveis pela indenização em si, mas por construir com os atingidos os parâmetros para obtenção da indenização”, pontua. “Por exemplo, uma das nossas matrizes é em relação à saúde. Então, a ideia é que nós criemos uma relação de danos reconhecidos e relacionados à saúde para que ela seja usada por cada atingido, ou por cada núcleo familiar, em seu processo de indenização junto à Vale”.
De acordo com Vieira, a Aedas atende um público-alvo que gira em torno de 9.000 e 12.000 pessoas afetadas pela tragédia. “Nós atuamos em Brumadinho, que é a região um, e em Betim, Igarapé, São Joaquim de Bicas e Juatuba, que compõem a região dois. E também acompanhamos as comunidades religiosas de matriz africana em Mateus Leme”, conclui.
.