Atraindo uma média de 500 mil turistas por ano para suas ruas e bairros históricos, segundo dados do Ministério do Turismo, Ouro Preto é considerada a principal cidade histórica do Brasil. No entanto, o que muitos desses visitantes não sabem é que cachoeiras que refrescam seus passeios e até alguns bens tombados que os transportam ao passado estão sendo ameaçados diariamente pelo grande número de barragens de minério existentes na região, impactando a vida de quem vive ali e precisa conviver com o medo, a poeira e a destruição de seus bens naturais. A cidade é a com maior número de estruturas de rejeitos com algum nível de alerta, o pior cenário do país. O medo e a apreensão devem continuar fazendo parte da vida de quem vive abaixo dessas barragens por pelo menos mais uma década. Isso porque, segundo as empresas, a previsão é que a eliminação das estruturas dure pelo menos até 2035. Em 2019, uma lei obrigou a descaracterização de todas essas barragens, porém, ao fim do prazo (em 2022), apenas 10 delas haviam sido desmontadas, de acordo com a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam). Até dezembro de 2023, havia 15 barragens desativadas e 39 que ainda estavam passando pelo processo. Um levantamento feito por O TEMPO no Sistema de Gestão de Segurança de Barragem de Mineração (SIGBM), da Agência Nacional de Mineração (ANM), indicou que, em dezembro de 2023, havia 51 barragens com algum nível de alerta em Minas Gerais, sendo que 26 delas sequer têm a estabilidade comprovada pelas empresas. Em todo o Brasil, são 88 barragens sob algum tipo de alerta, ou seja, Minas tem quase 60% de todas as barragens que exigem alguma atenção do país. As barragens com algum nível de risco estão distribuídas em 16 municípios mineiros, mas Ouro Preto é a cidade que aparece no topo do ranking negativo, com dez barragens sob risco, sendo cinco delas nos dois níveis de emergência mais altos (2 e 3). Além disso, seis dessas barragens não tiveram a estabilidade comprovada pelas empresas. De todas as estruturas em “alerta” em território mineiro, 28 pertencem à mineradora Vale, considerada uma das maiores do mundo. Para explicar como funcionam esses níveis de alerta das barragens, o engenheiro hidráulico e especialista nessas estruturas Carlos Barreira Martinez as compara ao corpo humano. “Quando você fala que a barragem está em Nível de Alerta, isso significa que ela inspira cuidados, segurança. Já no nível 1, indica que ela está com um problema que pode trazer uma dor de cabeça enorme, mas ainda não tem que retirar a população”, detalha. Quando esse “problema inicial” sofre uma piora, é acionado então o Nível 2, fase em que as empresas passam a ser obrigadas a fazer simulados, colocar um plano de evacuação em ação e a fazer o acionamento de sirenes. Já o nível 3, ainda segundo o especialista, “é um desastre” em andamento. “Se eu puder fazer uma comparação para que o pessoal possa entender, o Nível de Emergência é quando os exames apontam alguma alteração. O nível 1 já é quando você sente dor no peito, passando para o nível 2 quando ela se torna tão forte, tão incômoda, que você fala: ‘olha, eu vou ter que ir para o hospital’. Já o nível 3 seria quando você está indo para a mesa de cirurgia”, exemplifica o professor. Richard Guerra, vice-presidente do Instituto Guaicuy, entidade que luta pela revitalização da bacia do rio das Velhas – que, por sinal, nasce em Ouro Preto -, explica que são várias as barragens preocupantes no município, mas, talvez, o caso mais grave seja do complexo da Mina de Fábrica, onde existem cinco barragens e um dique em diferentes níveis de emergência, sendo uma delas no mais alto de todos. O vice-presidente do Guaicuy também cita a barragem Doutor, da Vale, localizada no distrito de Antônio Pereira, que fica a 25 quilômetros de Ouro Preto. A estrutura já esteve em nível 2 de emergência e, após o início das obras de descomissionamento, passou para o nível 1. Em caso de rompimento, além de atingir imóveis no distrito, que já teve diversas famílias removidas de suas casas, a lama tomaria conta da Cachoeira do Pinguela, de um sítio arqueológico chamado “Fazenda Gualaxo”, e, até mesmo, da Ermida (capela) de Nossa Senhora Aparecida de Bento Rodrigues, distrito que seria engolido pelos rejeitos pela segunda vez. Até mesmo o novo Bento Rodrigues, reconstruído pela fundação Renova após a destruição do distrito de Mariana, poderia ser afetado pelo rompimento, já que uma das estradas que dá acesso ao local poderia ser soterrada. Três barragens no nível mais alto Entre as 51 barragens em nível de alerta, as três que estão com maior risco (nível 3) são a Sul Superior, localizada em Barão de Cocais, e a Forquilha III, em Ouro Preto, ambas da Vale. A terceira estrutura em pior estado é a barragem da Mina de Serra Azul, da ArcelorMittal, localizada em Itatiaiuçu. Todas as cidades estão na região Central de Minas Gerais, no chamado “Quadrilátero Ferrífero”. Para Martinez, o grande número de barragens sob alerta é consequência da velocidade que a atividade minerária tem avançado em Minas. “Toda obra de engenharia a gente sabe que vai haver um risco, o problema é que eles estão muito altos. E isso ocorre porque o processo de mineração está sendo muito rápido, nós estamos tirando muito minério. A quantidade de resíduo que é gerado da mineração é muito elevado, portanto, o risco cada vez mais alto. A questão é que a atividade minerária é necessária, ela cria empregos, e tudo que a gente olha em volta é feito a partir de processo de mineração, ou quase tudo. O problema é que a gente tem que fazer direito”, conclui o especialista. Procurada pela reportagem, a ANM informou, por nota, que atualmente a sua Superintendência de Segurança de Barragens de Mineração conta com 76 fiscais “dedicados exclusivamente à segurança de barragens e distribuídos em cinco unidades”. “A ANM divulga em seu site os boletins mensais que tratam das vistorias realizadas e alterações no cadastro de barragens. De janeiro a novembro deste ano a equipe realizou 340 vistorias”, completou o órgão. Por fim, o órgão federal destacou ainda que a importância do SIGBM – sistema que foi usado por O TEMPO para fazer este balanço da situação atual das barragens de Minas Gerais. “O compromisso com a transparência de informações pela agência, corroborado pelo SIGBM, é um incentivo para que os empreendedores se comprometam com a segurança das barragens”, concluiu a ANM. Previsão de verão “muito chuvoso” é preocupante Ainda conforme Martinez, a população que vive abaixo destas barragens deve ficar atenta durante o período chuvoso, especialmente após as fortes ondas de calor que atingiram a região Sudeste neste ano. “Temos a possibilidade de ter um verão muito chuvoso. Pode ser que não, mas há uma perspectiva e, se isso acontecer, essa é uma situação para as pessoas ficarem preocupadas, atentas”, alerta. À medida que as chuvas se intensificam, a água penetra e encharca o solo, chegando até as barragens de rejeito. Com isso, segundo Julio Cesar Nery Ferreira, engenheiro de minas e Diretor de Sustentabilidade e Assuntos Regulatórios do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), aumenta-se o volume e o consequente transbordamento, que pode danificar a “parede” das estruturas e levar a um rompimento. O meteorologista Lizandro Gemiacki, do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), explica que a teoria das mudanças climáticas, discutida desde os anos 90, alerta que, com a temperatura global aumentando, o mundo vai experimentar eventos extremos, o que já vem ocorrendo nos últimos anos, com ondas de frio e calor muito intensas. “O que é mais provável de acontecer, quando a gente tiver temperaturas mais altas, é uma maior frequência de eventos extremos, portanto, chuvas mais intensas e em um menor período de tempo, alternando com secas mais intensas”, completou o especialista. Risco ao abastecimento de BH e região Não são apenas os moradores das regiões mais próximas destas barragens que podem ser afetados. Assim como o rompimento de Brumadinho afetou o abastecimento da região metropolitana de Belo Horizonte ao contaminar o rio Paraopeba, de onde era retirada boa parte da água que alimenta a região, essas 51 barragens colocam…