Quando o filme Irreversível (2002) estreou nos cinemas, só se falava numa cena de estupro que durava cerca de 10 minutos. Eu não conseguia entender a serventia de uma cena assim. Uma sugestão de estupro de 10 segundos já é incômoda e desnecessária, quanto mais numa duração dessas. Rapidamente, pensei que só alguém muito sádico ou masoquista, ou sadomasô, para gostar de ver uma cena assim.
Ao ler detalhes, porque também não tive estômago para sequer ver as fotos, do estupro cometido pelo médico contra uma parturiente, quase que de imediato lembrei do caso do jogador de futebol brasileiro, condenado por estupro na Itália. Mulheres fora de seu estado normal de consciência, sedadas, que foram abusadas com ações bem parecidas.
Prontamente podem dizer que foi diferente, porque a grávida estava anestesiada e ia fazer um procedimento em confiança, enquanto a outra mulher estava entre homens, alcoolizada. É uma maneira de repreender a mulher, por estar bebendo, entre homens, sabendo dos riscos, e jogar parte da culpa no colo dela. Afinal, homens bêbados fazendo merda é engraçado, perdoável e compreensível, mulheres bêbadas são cachorras de conduta desviada. A única ação digna que se pode ter, frente a uma pessoa fora de seu estado de consciência, é cuidar dela. Ou ao menos não se aproveitar dela. É estupro. E culpar a mulher, seja pela bebedeira, pela saia curta, ou por ter sido provocante, é dar razão ao estuprador; torna-lhe cúmplice da tragédia.
Nossa formação machista trata a mulher com violência e como objeto desde a infância. O menino, ainda de fraldas, que tenta agarrar a(s) menina(s) para beijar é o macho, namorador, esse aí vai dar trabalho, vai ser um garanhão. Claro que se uma menina, sem a típica truculência masculina fizesse o mesmo, seria um caso preocupante, conselho de classe, conversas moralistas, psicólogo e tudo. Porque nós homens podemos pegar todo mundo, porque somos os porretas, mas as mulheres não podem dar pra todo mundo, porque viram vagabundas. Inclusive, é uma conta que não fecha. Se o homem tem que comer todo mundo, e as mulheres não têm que dar pra ninguém, a solução é forçar a mulher a dar, porque vai faltar gente na empreitada masculina.
Quando escrevi a peça Alugo minha língua, fiz questão de colocar uma cena em que se discutia dois casos na infância. Num deles, um menino dá um soco no outro. Normal. Coisa de meninos. Acontece. Esse aí é porradeiro, não leva desaforo pra casa. No outro, um menino beija outro menino na boca. Escândalo. Menino com problemas. Reunião de pais. Qual a lição? Agredir o outro, pode. Amar o outro, não. Ah, mas o homossexualismo (sic) é uma doença, é um desvio.
Em qualquer roda de conversa de homens, quando o assunto é mulher, é praticamente certo que os comentários serão os mais escrotos, violentos, tratando-as como objetos e troféus. E não são poucos os casos em que os homens contam orgulhosos que bateram assim, puxaram cabelo assado, botaram ela para fazer tal coisa de tal modo.
A reprodução, nos filmes, de cenas que envolvem bater, amarrar, puxar, rasgar, sempre me incomodaram. Claro que existe o fetiche, a fantasia. Mas sempre parecia me soar como limite tênue onde forçar e agredir uma mulher pode ser algo aceito e prazeroso. E daí para ser estupro, é um passo. Inclusive porque o constrangimento feminino, em muitos casos, faz com que mulheres menos conscientes aceitam fazer coisas desagradáveis para agradar seu macho, se permitindo certas violências. E a culpa, neste caso, é também nossa. Talvez por tudo isso, nossa classe de machos héteros não entenda ou relativize certos casos de estupro, porque nos são dados certos “direitos” que parecem enquadrar certos estupros como aceitáveis.
Sim, nós, machos héteros, convivemos com a cultura do estupro. Desde a mais tenra infância, passando pelo agarrar forçado no carnaval, e pelo embebedamento em festas para tentar comer alguém. A linha é tênue, e não fazemos nada para mudar isso.
Quando chamamos de monstro ou de doente o médico preso recentemente, estamos colocando-o uma categoria de exceção, mostrando com nosso discurso que não somos assim e que condenamos o ato.
Não. Enquanto vivermos ainda na cultura machista em que vivemos, o caso do médico, como o do jogador de futebol, será mais um caso entre a gente, e não algo do qual não fazemos parte.
É preciso mudarmos muito para podermos, com tranquilidade, chamar de monstro e de exceção o que nós alimentamos como o estupro nosso de cada dia.