A história do homem que matou a esposa por ciúmes, estrangulando a moça quando ela dormia, se tornou um clássico da literatura e uma das principais obras do escritor inglês William Shakespeare. Mas o crime praticado por Otelo, o Mouro de Veneza, não é um fenômeno apenas literário. No ano passado, 113 mulheres foram assassinadas pelos companheiros na Bahia. Para lidar com esse problema, nesta quarta-feira (29), foi anunciado a criação do Núcleo de Enfrentamento e Prevenção ao Feminicídio (NEF).
O órgão vai receber autores de violência doméstica e familiar que estejam em cumprimento de medida protetiva de urgência. A proposta é trabalhar com os agressores o que é ser homem e outras questões ligadas ao machismo. A inciativa é uma parceria da Prefeitura de Salvador com o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) e vai funcionar na Secretaria de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude (SPMJ), no Comércio. A entrega oficial foi feita pelo prefeito Bruno Reis, durante evento virtual.
“Salvador tem como política pública de proteção, defesa, enfretamento, e prevenção a violência doméstica, familiar e ao feminicídio. Essa mensagem é para todos os homens da nossa cidade. Estamos aqui para orientar, oferecer suporte, apoio, ajuda na reestruturação das famílias, no fortalecimento dos vínculos, porém, para evitar que haja novas agressões”, afirmou.
Prefeito convidou os homens a refletirem (Foto: Betto Jr/ Secom) |
Inicialmente, o Núcleo vai funcionar às quartas-feiras e aos sábados, das 8h às 17h. Serão quatro turmas com dez homens cada, que serão encaminhados pelo TJ, durante dez semanas. Eles serão acompanhados por um ano. “Salvador não pode ter espaço para a violência sexual, familiar e doméstica, justamente por isso estamos montando esse Núcleo”, disse Bruno.
Na trama de Shakespeare, depois de matar a esposa por um suposto adultério que nunca aconteceu Otelo chega à conclusão de que maior erro dele foi ter amado demais. Para as mulheres que já foram agredidas pelo marido ou namorado, no entanto, possessão é o principal elemento dessa equação, e não amor. Juliana* viveu em uma relação abusiva por cinco anos e contou que as agressões começaram de forma sutil.
“Primeiro, ele começou a implicar com minhas roupas. Depois, com as minhas amigas, até que depois de a gente voltar de uma festa ele me deu o primeiro tapa. Eu perdoei, mas ele fez de novo, e pior, então, coloquei um fim no relacionamento. Ele não aceitou muito bem, mas tive uma rede de apoio que foi minha família. Sei que nem todo mundo tem esse suporte”, disse.
Ela contou que ficou feliz com a inciativa do poder público, mas criticou a morosidade da Justiça para lidar com essas questões. “Medida protetiva sozinha não resolve, é preciso ser mais duro com esses casos. O homem que bate em uma mulher é capaz de matar. Vamos aguardar isso acontecer? Quem ama não maltrata”, disse.
Desembargadora apresenta dados durante o evento (Foto: Betto Jr/ Secom) |
A desembargadora do TJ-BA, Nágila Brito frisou que o Brasil é o 5º país que mais agride mulheres no mundo, e que a Bahia ocupa a 3ª posição entre os estados mais violentos. No ano passado, o sistema de justiça contabilizou 113 feminicídio, e este ano, em dados não oficiais, são cerca de 70 casos.
“Recentemente uma recomendação do ministro Luiz Fux determinou que se dê prioridade aos processos de descumprimento de medidas protetivas, e aí entra a prefeitura com esse trabalho, porque esse Núcleo é para enfrentar o feminicídio. No momento em que nós ensinamos aos homens o que é ser homem verdadeiramente trabalhamos para erradicar essa violência”, afirmou.
A magistrada lembrou que a Lei Maria da Penha afirma que as políticas públicas devem obedecer a uma ação articulada entre a União, estados e municípios. A parceria entre o TJ e a Prefeitura para a criação do Núcleo foi firmada em maio deste ano e contará com apoio de profissionais da SPMJ e da Guarda Civil Municipal (GCM).
Na peça inglesa, Otelo ao observar o corpo da esposa morta percebe o erro que cometeu e arrependido tira a própria vida. A proposta do Núcleo é fazer os homens compreenderem a dimensão do problema da agressão doméstica e evitar tragédias como essa.
*Usamos nome fictício para proteger a identidade da vítima.
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