Em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, um grupo de mulheres em vestes cerimoniais cruzam as ruas da cidade há mais de 200 anos para reforçar um compromisso de fé junto à comunidade. São as integrantes da Irmandade da Boa Morte e Glória, que mantém viva uma tradição secular pontuada por muita luta e resistência.
É justamente esse legado que se tornou objeto de desejo da escola de samba carioca Unidos de Padre Miguel, que divulgou nas suas redes sociais que contaria a história da devoção no Carnaval de 2023. A irmandade, por sua vez, recusou a homenagem em uma carta aberta divulgada ontem, por considerar que a intenção da agremiação carnavalesca não reflete a trajetória da confraria com fidelidade.
A Unidos de Padre Miguel divulgou o tema do enredo na quarta-feira (06): “Ave Maria Olorum – A corte da Boa Morte é o enredo que levaremos para a Marquês de Sapucaí, em 2023, em busca do nosso tão sonhado título!!!”, dizia a legenda do vídeo postado pela agremiação.
A produção de dois minutos e meio mostra imagens de mulheres com roupas brancas, algumas com véu e outras com torsos na cabeça, usando colares e pulseiras coloridas, segurando balaios de flores e dançando ao som de um batuque, nas ruas do Centro Histórico de Salvador.
Seis dias depois, na terça-feira (12), a irmandade usou outra rede social para publicar a carta aberta afirmando que recusa o enredo da escola de samba, justificando que o vídeo publicado pela Unidos de Padre Miguel “nos trouxe preocupação, pois diverge de como ocorre as tradicionais manifestações da irmandade, caracterizando falta de preocupação, responsabilidade e até respeito a nossa bissecular irmandade”, diz o texto.
Irmandade diz não ser folclore
A diretora da Irmandade da Boa Morte, Irmã Zelita, diz que, assim como ela, as outras 30 irmãs que compõem a confraria não querem apresentar a história da entidade no Carnaval, por não serem um folclore.
“Todas nós concordamos e já batemos o martelo de que não iremos nos apresentar nessa festa. Temos uma tradição de 200 anos que é forte. Nós não aceitamos porque não somos um folclore, somos uma entidade de catolicismo”.
Além de temerem como a história da Irmandade será contada, a falta de comunicação prévia foi outro motivo apresentado pela diretora para a recusa da homenagem. “Fizeram tudo por conta deles. Já conversamos e dissemos que não queremos. Agora o que eles decidirem também será por conta própria, nós não aceitaremos e iremos responder”, afirma Irmã Zelita.
Escola de samba admite falta de contato prévio
A assessoria da Unidos de Padre Miguel afirmou que não entrou em contato com a Irmandade antes do anúncio da homenagem. A primeira conversa entre as partes ocorreu um dia após a publicação do tema do enredo. A escola de samba afirma ainda que a confraria havia concordado e que a prefeitura de Cachoeira também demonstrou entusiasmo.
Em nota, o grupo carnavalesco diz ter sido pego de surpresa pelo anúncio negativo, já que uma reunião de planejamento estava agendada para acontecer em Cachoeira. “Desde o lançamento em nossas redes sociais estamos em contato com a irmandade esclarecendo dúvidas e alinhando a ida de nossa equipe de criação e direção da escola para os últimos ajustes sobre o projeto e para conhecer o município de Cachoeira”, detalha o texto.
E continua. “Nosso contato tem sido feito diretamente com a Irmã Zelita, inclusive já há uma reunião programada para acontecer na próxima semana, em Cachoeira. Estamos confiantes de que esse mal-entendido seja resolvido da melhor forma possivel”.
Questionada, Irmã Zelita, diretora da Irmandade Boa Morte, afirma que a decisão de recusa já está tomada.
Retorno da festa da Boa Morte
Pode até não ter a confraria na Sapucaí, mas em Cachoeira a festa está garantida. A Irmandade da Boa Morte e Glória celebra anualmente o festejo em homenagem a Nossa Senhora. Na programação, há missas, procissões, distribuição de comidas e samba de roda. Por causa da pandemia da Covid-19, o evento ficou dois anos sem ocorrer.
Este ano, o evento, que é considerado Patrimônio Imaterial da Bahia desde 2010, retornará como pede a tradição. De acordo com Irmã Zelita, a comemoração ocorrerá entre os dias 13 e 17 de agosto. “Já estamos nos preparando para a volta que tanto desejamos. Esse ano será ainda mais especial por causa da saudade”, anseia a diretora da Irmandade.
A Bahia em outros carnavais do Rio
Não é de hoje que a Bahia aparece nos Carnavais do Rio. Apenas esse ano, o sambódromo da Marquês de Sapucaí contou as histórias de três baianas: Santa Dulce dos Pobres, Mãe Stella e Chica Xavier; e homenageou dois orixás, Oxossi e Exu.
O tributo à Santa Dulce dos Pobres foi feito pela escola Unidos da Ponte. Com o enredo Santa Dulce dos Pobres – O Anjo Bom da Bahia. A escola Acadêmicos do Cubango desfilou a herança quilombola, cantando a história da atriz Chica Xavier. O enredo Amor Preto Cura foi desenvolvido pelo carnavalesco João Vitor Araújo.
Já a escola Unidos do Porto da Pedra, adentrou a avenida levando a força da escritora e ialorixá Mãe Stella de Oxóssi.
A Mocidade Independente de Padre Miguel desfilou, na Sapucaí, com o enredo em homenagem à Oxossi, considerado padroeiro da escola. A Acadêmicos da Grande Rio foi a campeã do Carnaval deste ano, com o tema Exu, outra divindade presente nas religiões de matriz africana.
Em 2020, as Ganhadeiras de Itapuã comemoraram o título da Viradouro, que contou a história das mulheres que fazem parte da tradição do bairro soteropolitano. Depois de um hiato de 14 anos sem vitórias, a Estação Primeira de Mangueira venceu o Carnaval 2016, com o enredo Maria Bethânia: a Menina dos Olhos de Oyá, em homenagem à cantora santoamarense.
*Com orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo