Alvo. O miliciano Adriano da Nóbrega, que ficou foragido da polícia mais de um ano até ser morto na Bahia Foto: Reprodução
A conversa por aplicativo de mensagem é rápida, sem detalhes. Quando a ligação é por voz, exige-se um cuidado a mais, com a troca de chips e aparelhos com menos de três meses de uso. Essas eram algumas das estratégias adotadas pelo ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e miliciano Adriano Magalhães da Nóbrega para não ser rastreado pela Polícia Civil e pelo Ministério Público do Rio (MPRJ), antes de ser morto no município de Esplanada, na Bahia, em 9 de fevereiro do ano passado. O fio condutor do esquema de comunicação adotado pelo ex-militar era a então mulher dele, Júlia Emilia Mello Lotufo, de 30 anos, que atualmente negocia com a promotoria uma delação premiada para revelar, segundo ela, os crimes do marido.
Além das técnicas de guerra que aprendeu na tropa de elite da PM como a de progredir na mata e viver nas sombras, Adriano obrigava parentes e integrantes de seu bando a seguirem uma série de regras para que a polícia não chegasse até ele. De acordo com relatório sigiloso do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MP do Rio, ao qual O GLOBO teve acesso, “um cuidadoso esquema era utilizado entre eles (membros da quadrilha), como forma de impedir o rastreio e a identificação de suas localizações”. Foi essa disciplina que manteve o então chefe da milícia de Rio das Pedras e da Muzema foragido da Justiça por mais de um ano.
Um celular para cada interlocutor
Adriano adotava a prática de comunicação “ponto a ponto”, ou seja, quando dois celulares são usados exclusivamente para os interlocutores falarem entre si, diminuindo assim as chances de serem rastreados. Desta forma, o ex-capitão tinha um aparelho para falar com cada pessoa e, mesmo assim, só se comunicava com aqueles em que confiava. Não à toa, quando foi morto na Bahia por policiais daquele estado, supostamente num confronto, foram apreendidos com ele 15 aparelhos e sete chips de celulares, alguns deles novos, sem uso.
Pouca coisa foi recuperada dos celulares porque Adriano apagava as mensagens de imediato. A ideia era não deixar evidências. Mas, das poucas conversas encontradas pelos técnicos, pode-se notar uma constante preocupação com a segurança nas comunicações. O relatório do MP ressalta isso: “durante todo o período de interceptação apurou-se a preocupação dos envolvidos na tentativa de contato com ADRIANO” (sic).
Numa conversa poucas horas antes de sua morte, Adriano pede ao soldado da PM Rodrigo Bitencourt Fernandes Pereira do Rego que pegue o celular “ponto a ponto” com Scheila Lotufo, mãe de Júlia, para monitorar a chegada de sua mulher ao Rio. A então companheira do miliciano tinha passado uns dias com ele, em Esplanada, levando a filha dela, à época, de 7 anos, e voltava para casa de carro. Rodrigo, segundo denúncia do Gaeco, comandava o ramo da agiotagem do ex-capitão. O soldado também já teve um relacionamento com Júlia, antes da união dela com Adriano. Do relacionamento entre Rodrigo e ela, nasceu a menina que voltou de carro da Bahia com a mãe.
Em outro diálogo com Júlia, Adriano pede que “não venham com telefone ligado”. Ele diz: “desliguem tudo, se sentirem mal, voltem e esperem”. A troca de mensagens aconteceu no dia seguinte da polícia ter encontrado o ex-caveira numa mansão na Costa do Sauípe, também na Bahia, onde passava férias com Júlia e a filha. Numa fuga cinematográfica, ele pulou um muro, nadou num mangue localizado nos fundos do resort até a restinga e sumiu da visão dos agentes do Rio e da Bahia. Na mensagem recuperada do celular, ele pede ainda que Júlia leve roupas para ele. Aliás, é muito comum ele fazer tal pedido à mulher, inclusive escolhendo o tipo de mala, no caso camuflada, e facas.
Dos dados extraídos de um dos celulares de Adriano, ainda restou uma conversa com uma pessoas identificada como J. O miliciano passou a ela instruções para que seus cúmplices desligassem os celulares. Determinou ainda que evitassem o Instagram e só usassem sinais de wi-fi.
No relatório do Gaeco consta ainda que os chips e celulares usados por Adriano eram comprados por “laranjas”. Esta prática de adquirir aparelhos e dispositivos em nome de terceiros era feita não só para evitar que achassem o esconderijo do ex-capitão, como também para não deixar rastros sobre os crimes executados pelo grupo dele de matadores de aluguel. Segundo a DH e o Gaeco, o homicídio do empresário Marcelo Diotti, ligado à contravenção, foi planejada e executada pelos homens de Adriano. Um dos integrantes, Leonardo Gouvêa da Silva, conhecido como Mad, usou um chip só para fazer as pesquisas e ligações no dia do crime, 14 de março de 2018. De acordo com as investigações, Leonardo usou o chip em nome de outra pessoa de 29 de janeiro a 14 de março de 2018. Depois disso, o dispositivo foi desativado.
Agenda de celular do chefe de matadores de aluguel era por codinomes
O miliciano usava codinomes na agenda do celular e, em alguns casos, nem nome havia. Rodrigo, por exemplo, estava registrado como “Rd”. Os investigadores descobriram nos aparelhos o nome “fazenda 01”, que era como o próprio Adriano identificava o local onde se escondeu quando foi morto. Para falar com a mãe, Raimunda Veras, ele se utilizava de um celular “ponto a ponto” que ficava com Júlia. Também usava como ponte Valdemi Gomes Júnior, o Cabeça, uma espécie de faz-tudo do ex-capitão e da família.
Valdemi usava cinco celulares. Júlia, Rodrigo, Valdemi e outras seis pessoas foram denunciadas por organização criminosa e lavagem de dinheiro. A viúva chegou a ficar foragida, mas a Justiça converteu a prisão preventiva dela em domiciliar com uso de tornozeleira eletrônica. A defesa dela propôs ao MPRJ que ela faça uma colaboração em troca da liberdade. A delação está nas mãos do procurador-geral de Justiça, Luciano Mattos.
Procurado, o advogado Demóstenes Torres, que defende Júlia Lotufo, não retornou às ligações, nem o pedido de entrevista por e-mail, a fim de esclarecer sobre o processo criminal ao qual a viúva de Adriano responde.
Adriano chegou a ser investigado no Caso Marielle
Adriano chegou a ser investigado pelas mortes da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, ocorrida em 14 de março de 2018. Cinco meses após o crime, quando foi chamado à Delegacia de Homicídios da Capital (DH) para prestar depoimento sobre o caso, o ex-caveira disse ser comerciante e pecuarista. Ao ser questionado sobre as trocas frequentes de celulares, Adriano respondeu que fazia isso por “medida de segurança e preservação de sua privacidade”. As investigações não encontraram indícios de participação do miliciano no duplo assassinato. No entanto, na morte de Marcelo Diotti, ocorrida no mesmo dia de Marielle, a polícia tem evidências de que integrantes de seu grupo de matadores executaram o empresário na saída de um restaurante da Barra da Tijuca.
Apesar de ter vivido praticamente invisível desde que foi expulso da PM, em 2015, por envolvimento com a contravenção, as investigações comprovaram que ele estava à frente das milícias de Rio das Pedras e da Muzema, na Zona Oeste do Rio. Em janeiro de 2019, ele teve sua prisão preventiva decretada em decorrência da Operação Intocáveis do Gaeco, na época, coordenado pela promotora Simone Sibílio. A partir desta data teve início à caçada de Adriano, cujo nome chegou a ser colocado na lista de alerta vermelho da Interpol.