À noite, há mulheres que preferem não circular, sozinhas, em áreas mais distantes de Caraíva, vilarejo de Porto Seguro, no Sul da Bahia. Quando vão e voltam desses lugares fazem algo que detestam – pedir companhia para ir e vim. Os casos de assédio e estupro na comunidade são o porquê do medo.
O estupro da turista espanhola, cometido por três criminosos, na madrugada de 25 de julho, não foi a única violência sexual contra mulheres neste ano no local. Em julho, três mulheres foram vítimas de tentativas de estupro. Um deles ocorreu duas semanas antes do crime contra a estrangeira.
A mulher tinha ido ao banheiro, na Aldeia de Xandó, quando um agressor tentou estuprá-la. No final da tarde da última quinta-feira (29), moradoras de Caraíva espalharam uma mensagem online em que protestavam:
“Não estamos nos sentindo seguras em Caraíva. Estamos tomadas por medo e angústia. Precisamos da comunidade unidade para que haja mudança urgente”.
As festas irregulares e a falta de infraestrutura são o cenário do qual os agressores têm se aproveitado. “A rotina mudou. Em lugares distantes e escuros, eu não ando sozinha. É algo que odeio, pedir para alguém me acompanhar, mas não é seguro”, diz uma moradora, sob anonimato. A Polícia Militar afirma que faz rondas no vilarejo. Há um mês, de forma improvisada, três policiais começaram a trabalhar fixamente na comunidade. Eles chegaram depois da pressão feita por moradores e empresários.
Para quem nasceu, cresceu e formou família em Caraíva, é ainda mais simples observar que a vida das mulheres mudou: seja porque agora elas se enxergam como vítimas e têm a coragem de denunciar ou porque os casos de assédio e violência sexual, de fato, ficaram mais frequentes. “Fico surpresa em ver a quantidade de casos que estão acontecendo. Não sei se porque antes interpretávamos coisas como se não fossem crimes e hoje vemos que é”, fala outra moradora, que não quis se identificada e a quem chamaremos de Valéria.
Nativa de Caraíva, Valéria não é só mulher, mas também mãe de duas meninas, o que triplica a preocupação dela. Uma das filhas, de 13 anos, já sofreu dois assédios. “Em um deles, minha filha foi assediada na minha frente por dois rapazes”, lembra. No outro, um homem se aproximou, constrangeu a menina e até insinuou uma possibilidade de prostituição no Rio de Janeiro.
“Um homem ficou falando que se ela fosse para o rio ia ganhar muito dinheiro, que era muito bonita. São tipos de coisas que estão acontecendo aqui”, acrescenta Valéria.
A comunidade litorânea tinha, até 2010, 700 habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que vivem principalmente das atividades turísticas. Não há cálculo oficial recente, mas os moradores acreditam que eles são mais de dois mil. A energia chegou apenas em 2008 no vilarejo, hoje disputado por 40 pousadas, 12 restaurantes e cinco bares na Vila. Com as luzes ligadas na região, o turismo avançou.
A delegada interina da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Porto Seguro (DEAM), Elizabeth Salvadeu, afirma que a delegacia incentiva denúncias de mulheres, “mas que elas, por medo, ameaça e vergonha, não denunciam e continuam a ser abusadas e agredidas”. A Deam não respondeu quantas investigações de estupro registrados em Caraíva realiza no momento.
A Secretaria de Segurança Publica do Estado da Bahia foi questionada sobre a quantidade de casos de violência sexual em Caraíva, mas não respondeu até o fechamento. A Prefeitura de Porto Seguro também foi perguntada sobre os ataques contra mulheres em Caraíva, mas também não atendeu antes da publicação da reportagem.
Violência sexual se intensificou nos últimos dois anos
Os casos de estupro e assédio sexual começaram a preocupar a comunidade em 2019. O estopim das discussões sobre a insegurança das mulheres foi o estupro de uma moradora, no dia 14 de dezembro daquele ano. A cozinheira Mila Simões, 36 anos, caminhava pela Praia da Ponta do Nego, quando o crime aconteceu.
“Era luz do dia, com a praia teoricamente movimentada, eu estava caminhando e ouvindo música. Um ato normal de alguém que mora na praia”, recorda a carioca, que tinha firmado residência em Caraíva no verão de 2017, depois de passar o Réveillon do ano anterior no vilarejo.
Na época, “existiram outros casos, que não tiveram repercussão”, alerta Mila. As mulheres ainda temem denunciar a violência sexual – seja por represália da comunidade ou recepção nas delegacias – e esse “outros” fogem das estatísticas. A reportagem mapeou dois deles, além do crime contra a carioca. Mila levou o caso até uma delegacia de Porto Seguro. Até hoje, dois anos depois, ninguém foi preso. Também não houve exame de corpo de delito. “O laboratório só iria abrir vários depois e minha lesões no corpo teriam saído nesse tempo”, diz Mila.
“A rotina mudou”, diz moradora de Caraíva (Foto: Leitor CORREIO) |
O crime de estupro não ocorre só quando há penetração. A legislação brasileira considera qualquer ato libidinoso realizado mediante força ou ameaça contra alguém, sob pena de 6 a 10 anos. “O delegado nem usou a tipologia de estupro”, lembra Mila. Se não teve repercussão judicial, em Caraíva, pelo menos, o caso dela mobilizou a comunidade feminina.
Na mesma semana, mulheres criaram o grupo Caraíva sem Assédio, organizaram reuniões, espalharam faixas contra o assédio pelo vilarejo e distribuíram sprays de pimenta entra elas.
“Machismo e abuso sempre aconteceram por aqui. Mas, agora, as pessoas estão falando mais e está ocorrendo mais, por ter lugares mais afastados com pessoas morando. É muita gente sem controle do poder público para estruturar e receber todo mundo”, opina, coletivamente, o Caraíva sem Assédio.
Em janeiro de 2020, depois de reuniões e campanhas, no entanto, outro estupro ocorreu no vilarejo. No dia 21, Maria do Carmo Ribeiro, 27, publicou nas redes sociais: “Fui estuprada e não vou me calar”. O crime ocorreu na casa de Maria, nos limites da Aldeia Xandó. A vítima dormia quando teve a casa invadida por um homem.
O homem, identificado como Tácio Bonfim pela polícia, foi preso à época e é suspeito de cometer abusos contra mais cinco mulheres em Caraíva, segundo o Ministério Público da Bahia.
Território indígena é colocado sob tensão e lideranças temem preconceito
O vilarejo de Caraíva está a 70 quilômetros de Porto Seguro e não tem circulação de carros. São as canoas que guiam os turistas na chegada e na partida ou os moradores que precisam de serviços que a comunidade não oferece. Com a lotação da Vila, Caraíva cresceu em outras direções. Uma delas foi a Aldeia Xandó, com casas em construção e para aluguel temporário, cuja diária custa até R$ 450. Hoje, segundo lideranças do território indígena reconhecido pela Fundação Nacional do Índio (Funai), 70% dos moradores são de fora e apenas 30% nativos.
Desde 2019, pelo menos cinco casos de violência sexual ocorreram nas proximidades do território indígena, que foi colocado no centro dos debates. A turista espanhola estuprada na última semana voltava de uma festa clandestina na Aldeia quando o crime aconteceu. A partir das quintas-feiras, as festinhas clandestinas tomam conta da Aldeia. “Xandó e o entorno cresceram muito e estamos falando da importância de se combater esses crimes”, diz Sairi dos Anjos Santos, um dos sete líderes que acompanham o cacique.
A liderança está duplamente preocupada. “Já existe um certo preconceito contra indígenas e temos medo que as coisas sejam distorcidas. O turismo e o dinheiro trouxeram muito indeliquente”. lamenta. A Funai foi questionada sobre os casos de violência sexual contra mulheres no território. O órgão não respondeu até o fechamento da publicação.
A Aldeia Xandó e Caraíva estão conectadas por terra, a menos de dois minutos de caminhada uma da outra. “Xandó e Caraíva são irmãs gêmeas, uma coisa só. Não adianta querer culpar um lado”, opina Agrício Ribeiro, dono de uma pousada no vilarejo. Na opinião dele, Caraíva, que sempre atraiu turistas e novos moradores pela tranquilidade, foi “picada”.
“Picada pela picada do dinheiro e da ganância. Caraíva é um lugar frágil e que cresceu desordenamente. Qualquer crescimento desordenado traz algo de ruim”.
Para estabelecer uma relação entre crescimento turístico e urbano desordenado e casos de estupro e assédio é preciso olhar para um passado não tão distante. Entre as décadas de 1960 e 1990, no Brasil, propagandas oficiais de turismo brasileiras utilizavam imagens femininas, fora de contexto, e com apelo sexual, para atrair turistas. Só depois disso, e aos poucos, esse modelo foi deixado de lado. Mas, os problemas permanecem, se não há uma política pública de acompanhamento e gestão.
“Ao mesmo tempo em que o turismo ocasiona o crescimento econômico de determinados lugares, na ausência de políticas específicas de gestão e de desenvolvimento social, ele pode favorecer este tipo de prática”, explica Fernanda Caires e Caires, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas doutoranda em Economia pela Universidade Federal da Bahia.
Em 2019, a organização não-governamental Think Olga e o site de turismo booking.com formularam uma cartilha chamada “Mulheres Pelo Mundo, um guia para viajar em sua própria companhia”, com conselhos para enfrentar o medo de viajar sozinha, dicas de segurança e estratégias para aproveitar melhor a estadia. Mas, a mudança, acredita Fernanda, precisará perpassar mudanças e ações mais complexas. Não adianta, por exemplo, pensar o turismo isolado dos contextos onde ele ocorre.
Sem considerar os elementos culturais, a vulnerabilidade, o distanciamento do estado e a falta de políticas numa comunidade, acredita Fernanda, a violência sexual continuará a transformar paraísos em infernos.
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