Filhos de Gandhy, o cordão que se tornou afoxé
A história dos Filhos de Gandhy tem sido contada e recontada com versões que divergem quanto ao roteiro do primeiro desfile
Publicado em 18 de janeiro de 2024 às 05:00
Originalmente não era um afoxé, não tinha vínculo com terreiros de Candomblé e o seu desfile divergia da coreografia tradicional dos afoxés de final do século XIX e inícios do século XX. Era apenas um cordão com 36 integrantes, um terço dos mais de cem inscritos, naquele verão de 1949, quando Durval Marques da Silva, o “Vavá Madeira”, reuniu seus colegas estivadores em torno da ideia de formar um cordão para desfilar no Carnaval e que recebeu o nome Filhos de Gandhy, em homenagem ao líder pacifista indiano recém-falecido.
O Sindicato dos Portuários que estava sob intervenção do governo e sob suspeita de ter nos seus quadros vários integrantes do Partido Comunista, alertou quanto a possibilidade de o bloco ser reprimido pela polícia e incumbiu o advogado Edgard Mata para ficar de sobreaviso durante o Carnaval, perante a eventualidade de uma prisão. Foi essa expectativa de repressão que encolheu o cordão, para pouco mais de um terço dos inscritos.
A história dos Filhos de Gandhy tem sido contada e recontada com versões que divergem quanto ao roteiro do primeiro desfile: Bonfim ou Santa Luzia; nome dos fundadores; rituais de saída; símbolos originais e os incorporados ao longo dos anos. Sabemos que os figurinos originais do bloco eram simples, conforme Pierre Verger confidenciou a Antônio Risério e hoje, a partir de seu acervo fotográfico, se confirma essa avaliação.
Nasceu como um cordão exclusivo de homens e de estivadores. Em 1951, no seu terceiro ano de desfile, passou a admitir foliões oriundos de outras classes de trabalhadores, com a determinação de não usar bebidas alcoólicas, sob o argumento de que mulher e bebidas provocariam brigas, comprometendo a intenção de homenagear o líder pacifista. As mulheres não desfilavam; formavam um grupo de apoio, maioritário de prostitutas do Cais do Porto, elas que providenciaram lenços brancos para os torços originais e os vidros de alfazema para os banhos de cheiro.
De fato, os Filhos de Gandhy não era um afoxé, nem sombra disso considerando o seu repertório musical constituído de sambas e marchas. No ano referido, de 1951, incorpora ao desfile os símbolos da cabra (símbolo da vida) e do camelo (símbolo da resistência), tudo a ver com a mística do líder indiano homenageado e somente em 1952 é que se assume como afoxé, com a introdução de rituais a Exu, como nos revelam as fotos de Pierre Verger, e incorpora ritmos afros e ainda o símbolo do elefante, conduzido numa precária estrutura adaptada com rodas de bicicleta.
O Gandhy da primeira metade da década de 1950 não usava ainda os colares de contas azul e branco, uma de suas características marcantes. O bloco cresce em número de integrantes e em animação e representatividade. Mas, enfrentaria inúmeras crises e durante dois anos deixou as ruas e por pouco teria desaparecido, após ter sido despejado de sua sede. O radialista Gerson Macedo da Rádio Excelsior se empenhou no seu retorno. Gilberto Gil ouviu seu apelo e assumiu para sim a paternidade do bloco, como patrono e articulador cultural.
Gil conta a motivação “Quando eu voltei de Londres, dentro daquele processo de retomada, de redescoberta, de sofisticação de gosto, é que eu fui procurar especificamente os afoxés…. Me disseram que os afoxés não existiam mais. E de fato, fui encontrar uns vinte Filhos de Gandhy, com os tambores no chão, num canto da Praça da Sé…Fui procurá-los para entrar no afoxé. Foi como uma coisa devocional, uma promessa, uma vontade de pôr o meu prestígio… em prol daquela coisa bonita “.
Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras