Pense em um lugar quase isolado, onde praticamente a única forma de acesso é uma precária estrada de terra. Pela dificuldade do transporte, o abastecimento do local é prejudicado, deixando produtos básicos de alimentação e higiene mais caros e escassos. Quando chove, é desespero: a via fica alagada e ninguém entra ou sai do povoado. Em um cenário assim, o asfaltamento seria motivo de festa entre os moradores. Pois não é o que vem acontecendo no Vale do Capão, na Chapada Diamantina.
A discussão do asfaltamento da estrada que liga o povoado até Palmeiras, cidade-sede, é antiga. De um lado, o grupo que aponta as benesses e comodidades que viriam com com o asfalto. Do outro, alguns moradores argumentam que a obra significaria o aumento da exploração turística do local – algo que, na visão dos conservadores, seria prejudicial para o meio ambiente e cultura da região.
A já acalorada discussão foi inflamada no último sábado (3), após o governador Rui Costa, durante visita a Chapada, anunciar um plano de asfaltar o caminho de Palmeiras até a região dos Campos, onde fica a entrada para a Cachoeira da Fumaça. De lá até a Vila, parte central do povoado, o caminho seria feito de paralelepípedo.
‘Veio para atender interesses econômicos’
É clara a necessidade de uma melhoria na mobilidade e transporte para a população de Caeté-Açú, como o povoado também é chamado, na visão de Viriato Nova, que mora no Vale há 10 anos. Para ele, no entanto, o grande problema da tal estrada é que ela viria não para beneficiar os nativos e moradores, mas sim o interesse de empresários que pretendem transformar o paraíso natural em investimento.
Beneficiar esses endinheirados poderia, de acordo com Viriato, significar a destruição do Capão como conhecemos hoje, pois os interesses ambientais iriam para segundo plano, atrás dos econômicos.
“Há algum tempo o Capão já vem sendo tratado, por políticos e empresários, como um lugar que precisa se tornar lucrativo do ponto de vista turístico, e essa estrada vem num momento oportuno justamente para beneficiar essas pessoas. Não há um cuidado relacionado à preservação e aos interesses específicos da localidade por parte das instituições, que privilegiam o lucro”, argumenta o morador.
‘O lugar já está vendido’
Há 30 anos, o agricultor Lars Rellstab, 53, deixou a Suíça, país onde nasceu, para morar no coração da Chapada Diamantina atraído pela beleza da região e humildade das pessoas. O Capão que Lars conheceu há três décadas não existe mais na visão dele, e ser contra a estrada seria prejudicial apenas para os moradores da região, pois a indústria do turismo já venceu a batalha.
“A humildade deu lugar à ganância”, crava.
O suíço cita o exemplo do São João deste ano, onde, mesmo com a pandemia e proibição de festas juninas, o local ficou lotado. No entanto, algo inegociável para ele é que a estrada seja feita de forma ecológica, para não prejudicar a fauna e flora local.
“A proposta é totalmente válida, mas precisa haver contenção do fluxo de pessoas. Com a estrada ruim já existe superlotação, imagine asfaltada. Pega a Cachoeira da Purificação, por exemplo: lá mal tem espaço para 20 pessoas, mas recebe 300 nos feriados. A maioria delas sem qualquer educação para estar na natureza. O Capão, na verdade, precisa de um projeto e muito investimento antes de pensar em trazer mais gente”, opina, Lars.
‘Questão de saúde’
O médico Áureo Augusto, 68, costuma ser a referência para o atendimento a saúde dos moradores do Capão. No entanto, quando ele se tornou o paciente, sentiu na pele o quão prejudicial pode ser estar num lugar isolado.
O Capão possui apenas um pequeno posto de saúde. Por conta disso, ao sofrer um acidente, ele precisou ser levado até um hospital mais equipado. Para chegar até lá, foi uma hora em uma estrada ruim. Tempo que poderia significar a morte de um paciente mais grave.
“Foi horrível. Há muito tempo já defendo que a estrada precisa ser melhorada de forma radical. Mas, depois que experimentei, vi o quão grave é a situação”, conta o médico. “Eu prefiro que seja uma estrada parque, que tem todas as regras e cuidados. No entanto, precisa ser melhor do que ela. Seja pedra ou asfalto. Tudo aqui é mais caro por conta dessa estrada. Além disso, ela é muito anti-ecológica. Todas as plantas ao lado dela ficam cobertas de terra”, conclui.
O CORREIO tentou contato com a prefeitura de Palmeiras, responsável pelo distrito do Capão, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.
Ameaça a paraíso isolado
Não é apenas a estrada tortuosa que separa o Capão da “sociedade moderna”. Lá não há sinal de celular em nenhuma operadora. A internet chegou há poucos anos. A água chega, na maioria dos casos, através dos rios em canos instalados pelos próprios moradores. Até energia elétrica era artigo de luxo há poucas décadas.
Este isolamento transformou o Capão em um lugar buscado por pessoas que querem se desconectar da agitação do “mundo exterior” em troca da calmaria do contato com a natureza.
A corretora Betânia Rodrigues, 39, analisa que a chegada da estrada pode significar uma mudança do público que atualmente visita e mora em Caeté-Açú.
“Atualmente, a maioria das pessoas que vem até aqui e que compram terras, são pessoas que buscam esse ambiente mais rústico e pretendem morar aqui. A chegada da estrada pode significar a vinda de pessoas mais ricas que buscam esse contato com a natureza, mas sem abrir mão do conforto do mundo moderno, como já acontece em cidades como Lençóis e Mucugê, que possuem uma infraestrutura mais robusta”, analisa a corretora.
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