A mãe do médico Drauzio Varella morreu quando ele tinha quatro anos de idade. Lydia sofria de miastenia, uma doença que provoca perda de força dos músculos. Aquilo afetava não apenas a locomoção: respiração e deglutição também ficavam prejudicadas. Sempre que passava por uma crise, Lydia precisava tomar uma injeção, o que lhe dava certo alívio. Muitas vezes, Drauzio, aos três anos de idade, estava só em casa com a mãe e precisava sair correndo para chamar uma vizinha que aplicava a injeção.
Aquilo dava ao menino a sensação de responsabilidade pela saúde da mãe.
“A vizinha chegava e minha mãe renascia naquela hora. Eu tinha orgulho de fazer aquilo. Eu me achava mais importante que os meus amigos”, disse o médico em entrevista a Pedro Bial.
Drauzio, 79 anos, não sabe dizer o que o levou a escolher a medicina como profissão. Mas desconfia que essa experiência dos cuidados com a mãe pode ter sido importante na escolha. Este relato sobre a doença de Lydia está em O Exercício da Incerteza (Companhia das Letras/R$ 65/296 págs), livro de memórias dividido em pequenos textos de três ou quatro páginas cada.
São relatos emocionantes sobre a dedicação de Drauzio à medicina e à ciência, escritos com muita elegância. Embora algumas passagens sejam dramáticas, o escritor jamais apela para a emoção fácil ou para a pieguice. E não é à toa: Drauzio teve uma sólida formação como leitor e revelou sua paixão pela escrita de Machado de Assis (1839-1908) a Bial.
“Fiquei muito impressionado com ele. Falei ‘esse cara escreve de um jeito… ele conta uma história com o mínimo de palavras’. É impressionante a concisão dele. Ele sugere e você constrói o livro… Ele vai só pontuando”, disse Drauzio.
O médico observa ainda que Machado escreveu o Alienista 50 anos antes de Freud!”, espanta-se Drauzio, referindo-se ao livro passado num manicômio, que trata de assuntos como normalidade, loucura e razão.
Drauzio acrescenta ainda sua admiração por José de Alencar (1829-1877): “Gostava tanto de ler, que fui íntimo de Ceci [personagem do romance O Guarani]. Reconhecia mulheres que passavam na rua e dizia: “É parecida com Ceci. A literatura tem isso que é maravilhoso: você constrói aquele universo”.
Em suas lembranças, Drauzio destaca a importância do pai em sua formação universitária. Imigrante espanhol, José – que tinha o apelido Pepe – mantinha dois empregos para sustentar os filhos. Mas, mesmo sob restrições financeiras, ele fez questão de que Drauzio se dedicasse aos estudos. “Ao contrário de outros meninos da minha geração, que deixavam de estudar aos 14 anos para trabalhar em fábricas”.
A evolução da ciência também é assunto de diversas passagens do livro. E é provável que o autor destaque isso por causa dos recentes ataques que cientistas sofreram, especialmente na pandemia, quando muitos duvidavam das recomendações de isolamento e, sobretudo, das vacinas.
Drauzio chama a atenção para os recentes avanços da medicina, que, até o fim do século passado, foi, segundo ele, baseada “na experiência e nas opiniões pessoais de professores e profissionais em posição de destaque”.
“Colocar os dados científicos no centro das discussões acadêmicas, das condutas e dos procedimentos provocou uma revolução silenciosa na história da prática médica”, afirma. Estudantes de medicina não eram obrigados sequer a fazer residência, para se especializar numa área.
É chocante saber que, quando era criança, nos anos 1950, um médico recomendou que Drauzio, para se tratar de uma doença, deveria passar seis dias sem comer, sendo que nos três primeiros dias nem deveria beber água. E a recomendação era baseada apenas na experiência pessoal do médico, em vez de se basear em estudos clínicos, como ocorreu, por exemplo, nos estudos para a criação da vacina da covid, quando foi analisada sua eficácia em grupos de voluntários.
Há passagens interessantes sobre a vida pessoal de Drauzio, como o período em que, junto com um amigo, João Carlos Di Genio (1939-1922), o médico criou o cursinho pré-vestibular Objetivo, que resultou em um dos maiores grupos de educação do país. Somente na unidade da Avenida Paulista, em alguns anos, o cursinho tinha mais de dez mil alunos, em turmas de 400 pessoas.
Mas, apesar da ótima renda que a escola lhe oferecia, a devoção à medicina falou mais alto: “Assim que antevi a possibilidade de manter a família apenas com o exercício da medicina, parei de dar aulas. Passei a receber menos de 20% do que recebia no cursinho, mas nunca me arrependi”, garante Drauzio.