Enquanto o presidente Jair Bolsonaro despreza as evidências e continua a zombar da vacina chinesa, o Itamaraty tenta manter um canal de diálogo com Pequim para que não haja interrupções no fornecimento. Em uma carta enviada ao governo chinês, o chanceler Carlos Alberto França exalta a “relação fraterna” entre os dois países, que segundo ele tem sido fundamental para a contenção da pandemia no Brasil. E lembra que o Brasil tem cumprido com sua parte na parceria ao garantir o fornecimento de matérias-primas.
Na mensagem ao chanceler da China, Wang Yi, França pede ajuda para garantir a continuidade do suprimento dos Ingredientes Farmacêuticos Ativos (IFAs) de vacinas ao Instituto Butantan e à Fundação Oswaldo Cruz. Ambas as instituições utilizam insumos produzidos na China nas vacinas contra a Covid-19 mais aplicadas no país. A primeira, para o imunizante CoronaVac, do laboratório chinês Sinovac; a segunda, para a AstraZeneca, desenvolvida pela farmacêutica anglo-sueca em parceria com a universidade inglesa Oxford. Juntas, elas respondem por mais de 90% das vacinas aplicadas no Brasil.
Desde o início do programa de vacinação, em janeiro, a CoronaVac era o imunizante mais usado no país, chegando a representar mais de 80% das doses em março. Mas o insumo esteve em falta em alguns momentos durante o primeiro semestre, o que afetou a sua produção e reduziu a entrega das doses. Com o aumento da disponibilidade da AstraZeneca e a chegada de outras vacinas, como da Pfizer e da Janssen, a CoronaVac deixou de ser o imunizante mais usado no Brasil no início deste mês, de acordo com dados divulgados pelo Ministério da Saúde no dia 2 de julho. Mas continuava sendo responsável por 45,3% das aplicações, atrás apenas da AstraZeneca, com 46,2%.
Em sua carta, o chanceler brasileiro afirma que “para evitar a descontinuidade do programa nacional de vacinação”, o Butantan esperava receber insumos da Sinovac com o seguinte cronograma: 6 mil litros em junho, 12 mil litros em julho e 13 mil litros em agosto. O primeiro lote, de 6 mil litros, foi recebido no dia 26 de junho.
A carta foi enviada duas semanas depois da reunião que diplomatas e representantes brasileiros tiveram em Pequim no dia 19 de maio com o presidente da Sinovac, Yin Weidong, conforme noticiado pelo GLOBO. No encontro, o executivo pediu uma mudança no posicionamento político do governo brasileiro para permitir uma “relação mais fluída” e facilitar a exportação das vacinas para o Brasil. Yin sugeriu na reunião que o Brasil enviasse uma mensagem “no nível político” à China, dando a entender que isso o ajudaria nas conversas com o Ministério do Exterior chinês.
Foi nesse contexto que a carta de França chegou ao chanceler chinês, no início de junho. Ao pedir “os bons ofícios” de Wang Yi para o envio das vacinas, França lembra que o Brasil “tem buscado cumprir todos os contratos de exportação de alimentos, minerais e outras commodities importantes para a segurança do abastecimento da China e para toda a economia mundial”. E completa, afirmando que “é nossa firme intenção manter nosso lado da parceria, em benefício e harmonia para os dois povos, brasileiro e chinês”.
Esse trecho poderia ser interpretado como uma ameaça velada, mas também pode ser visto apenas como uma prática comum na diplomacia, em que países usam os recursos que têm e se relacionam com base em interesses para alcançar um resultado positivo para ambos os lados. Ou algo que o governo chinês gosta de chamar de “win-win” (ganha-ganha) quando explica sua diretriz diplomática. De todo modo, na tradução para mandarim o lembrete teve seu teor diluído, eliminando o tom que poderia ser interpretado como uma ameaça.
Quem acompanhou o início das relações entre os dois países no início dos anos 1980, diria que o Brasil conta com um crédito histórico com a China. Para o governo chinês, que começava o processo de abertura econômica do país, havia grande interesse na aproximação. O objetivo era tanto econômico como político: tirar lições do modelo de desenvolvimento brasileiro e estreitar os laços com um país grande e com uma diplomacia independente. No Brasil, a resistência do regime militar a um estreitamento das relações com um país comunista foi superada pelo interesse em diversificar os mercados para exportações.
Quando o presidente João Figueiredo veio a Pequim em 1984, na primeira visita de um chefe de Estado brasileiro a um país comunista, importantes concessões foram feitas pelo Brasil, enquanto o mundo ainda vivia a bipolarização da Guerra Fria. Entre elas, a criação de uma adidância militar da China em Brasília, a permissão para a instalação de um consulado chinês em São Paulo e a assinatura de um acordo cultural com Pequim. Foram medidas inéditas em relação a um país socialista, que tiveram que superar a desconfiança do Serviço Nacional de Inteligência (SNI), temeroso da influência marxista no Brasil. País de memória longa, a China tem isso registrado.
A cada ataque sem sentido à China, porém, Bolsonaro gasta um pouco desse crédito histórico. Além disso, desdenha não só dos interesses mais imediatos do Brasil, mas da lição de pragmatismo na relação com Pequim deixada pelo regime militar que ele tanto admira.