Carnaval 2024
Elas não comem reggae
Cada vez mais donas de si, mulheres ocupam as ruas durante o Carnaval e não levam mais assédio pra casa
Publicado em 10 de fevereiro de 2024 às 05:00
Cada vez mais donas de si, mulheres ocupam as ruas durante o Carnaval e não levam mais assédio pra casa Crédito: Marina Silva
No visual glitter, meias arrastão, maiôs, hot pants, transparências e decotes. Sozinha, em família ou em grupo de amigas, elas dançam, cantam e não têm medo de ir até o chão quando o groove do pagodão começa a entoar nos trios elétricos. Na última sexta, a chuva não desanimou as mulheres que ganharam as ruas livres para curtir o circuito sem medo, vergonha ou opressão. Apesar dos pesares, o jogo está virando e a participação feminina na folia só tende a aumentar. ”
A mulher tem que estar confiante de si, da força que ela tem, para poder sair de fato sem receios. Mas como toda mulher tem essa força, eu acho que nós temos que realmente vesti-la e vir para a rua, fazer a nossa cara, trazer nossa feminilidade, dizer não ao assédio e não deixar de curtir o Carnaval”, defende Luciana Britto. A ‘foliã’ de 44 anos – que frequenta os festejos há mais de 30 – acredita que as mulheres vivem um novo momento no Carnaval, com menos importunação, e consequentemente, têm sua confiança elevada para encarar o circuito com mais tranquilidade.
Para Maíra Kubík Mano, 41 anos, professora do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da UFBA, é possível afirmar que o cenário encontrado pelas mulheres que saem para curtir a folia já difere muito se comparado com o início dos anos 2000. “Há 20 anos, o Carnaval era mais violento para as foliãs. Não faltavam relatos de beijos forçados, toques indesejados, puxão pelos braços e pelos cabelos. Aliás, não precisamos voltar tanto no tempo. Há poucos anos, aqui em Salvador, ainda tínhamos arminhas de água que diversas vezes eram utilizadas para assediar as mulheres. Este ano elas estão proibidas. A violência de gênero infelizmente continua ocorrendo, mas me parece que há mais espaço para denúncia e também há uma conscientização maior da sociedade”, declara.
O fato é confirmado por Paula Freitas, 30 anos, que relembrou seus primeiros carnavais, em 2014: “Horríveis, não conseguia andar sem mexerem no meu cabelo, agarrarem meu braço, era muito desconfortável”. Ela conta que sentiu uma diferença no clima das ruas a partir de 2016 e aos poucos foi se sentindo mais à vontade para fazer coisas que antes não pensava: “pode parecer besta, mas era meu sonho poder sair só de biquíni na parte de cima e eu não conseguia. E a partir de 2017, 2018 eu já vi que dava e fui aos pouquinhos. Hoje nem short eu uso mais, só body e eu amo!”, conta bem humorada.
Um reflexo dessa transformação ao longo do tempo é a utilização de fantasias e itens de vestuário que mostram mais o corpo e antes eram evitados por desconforto e medo nas ruas, muitas vezes usados somente em bloquinhos pequenos ou camarotes.“Acho que isso faz parte de um processo de empoderamento das mulheres, de aceitação do próprio corpo, de compreensão de que somos livres para nos vestirmos como quisermos e que ninguém tem direito de nos assediar por isso”, ressalta Maíra.
Roberta Mendes, 25 anos, conta que apesar de se incomodar com alguns olhares, ela não se deixa abalar e preza por uma escolha de roupa que só tem um critério: seu livre arbítrio. “É o que quero e pronto. Ninguém tem poder sobre o meu corpo, ninguém tem poder de decisão a não ser eu mesma. Se eu estiver me sentindo à vontade e de boa, eu venho e acabou. E se eu tiver com outras mulheres, eu me sinto mais livre e mais à vontade”, defende.
A professora Maíra ainda destaca como uma fonte da mudanças na participação femina no Carnaval, o crescimento de uma nova onda do movimento feminista a partir dos anos 2010, que foi impulsionada pela internet e em especial a partir das redes sociais. Cita como exemplo as campanhas com hashtags elaboradas por ativistas e militantes que tomaram a timeline denunciando assédio, violência moral e sexual e feminicídio como: #meuprimeiroassedio, #meuamigosecreto, #meto e #nemumaamenos. “As redes sociais podem educar ou deseducar. Sem dúvida, elas contribuíram muito para a difusão do pensamento feminista, dos direitos das mulheres, negros e negras, indígenas, da população LGBTQIAP+ previstos em lei”, salienta.
Combate ao assédio no carnaval
A intensa mobilização da última década também foi refletida no poder público através de leis – como a 13.718/18, que criminaliza importunação sexual – comissões, secretarias e, no Carnaval, campanhas de conscientização que crescem em adesão da população. Em Salvador, temos dois exemplos que se destacam. O primeiro é a ação “Não é Não” que chega à Bahia em 2018 e tem como marco a distribuição de tatuagens temporárias com os dizeres: Não é Não!. A segunda é a iniciativa “Respeite as Minas”, que além de estratégias de combate ao assédio, foi levada para a folia nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, pelo trio sem cordas “Respeite as Minas”, puxado por cantoras como Larissa Luz, Tássia Reis, Mc Carol, Pitty, Karina Buhr, Xênia França e Luedji Luna.
Neste ano, uma das iniciativas para o combate ao assédio é fruto da Secretaria de Políticas para as Mulheres do Estado da Bahia, a campanha ‘Oxe, me respeite!’: “O “tom” da nossa campanha diz quase tudo. O Oxe, é a nossa forma regional de expressão e representa uma certa indignação. Quem é nordestino e diz “ Oxe “,o outro automaticamente já compreende a intenção. E quando vêm acompanhado do imperativo: “ me respeite!“ completa a nossa única intenção: conscientizar e combater as diversas formas de violência e assédio que as mulheres enfrentam em todos os espaços da sociedade” explica Elisângela Araújo, secretária de políticas para as mulheres.
A secretária acredita que a realização da campanha durante o Carnaval ajuda a desconstruir estereótipos de gênero, combater o machismo e a objetificação das mulheres, e garantir que todas possam aproveitar a festa de forma segura, livre de assédio e violência. “Ainda precisamos de mais respeito e proteção, mas a partir da massificação das campanhas, as mulheres estão entendendo muito mais que elas não estão sozinhas nas ruas e os homens sabem que não é apenas um pedido. O respeito passou a ser uma exigência, inclusive Lei! “,pontua.
Para buscar apoio em casos de assédio e estupro no Carnaval de 2024
Postos do Serviço Especializado de Respeito a Grupos Vulnerabilizados e Vítimas de Intolerância e Racismo (Servvir) Shopping Barra, Passeio Público, Campo Grande, Ladeira da Montanha e Avenida Milton Santos. Os locais podem ser consultados pelo WhatsApp (71) 99973-7729
RespeiteOndina – Av. Milton Santos, em frente a Drogaria São Paulo e Pelourinho – Praça Municipal, Câmara de Vereadores
O Correio Folia conta com o apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador