A tela em branco me olha como uma onda gigante ainda em formação. Nela, projeto minha frustração de nunca ter aprendido a surfar. Vejo de relance, na tevê, as manobras do brasileiro que ganhou a medalha de ouro nas Olimpíadas e o invejo, apesar do mar barrento de ondas modestas onde a competição foi realizada. Pipeline e Nazaré me fascinam mais, com seus penhascos maciços de água salgada nos quais gostaria de deslizar.
Passei a adolescência tendo a praia ao meu lado, como uma amante plácida e silenciosa. Apenas murmúrios e o desejo do desafio, implícito nas ondas violentas da maré alta. Ainda amo e admiro o mar. Gosto de ir bem fundo na praia da Barra, ao lado do Farol, com sua piscina de borda infinita. Onde meus pés não alcançam o fundo, onde minha alma se despe do enfado e abraça a plenitude.
Enquanto escrevo, escuto Chopin pelas mãos de Daniel Barenboim. E imagino o oceano no inverno, a chuva fustigando como açoite o meu corpo encolhido e o rosto que não cansa de admirar aquele monstro em permanente desassossego. Nunca vai cansar. Porque o mar à nossa frente é como uma comprovação definitiva de que a vida permanece. Mais ou menos como escreveu o espanhol Enrique Vila-Matas nesse trecho de Paris Não Tem Fim:
“É curioso, mas de toda essa história de medo e de sucesso, de riso e de pranto, o que mais se enraíza em minha alma é, em primeiro lugar, essa violenta desaparição da vista para o mar nos sonhos de Marguerite Duras, talvez porque me lembre de uma das últimas frases que ela escreveu, uma frase de C’est Tout, seu testamento literário: ‘Não sei se a morte me dá medo, não sei quase nada desde que cheguei ao mar’. Ou talvez porque o que mais me aterroriza na ideia da morte eterna é não poder voltar a ver o mar, as ondas no inverno quebrando nas praias desertas.”
Minha mãe gostava do mar. Hoje tem medo de entrar na água e se contenta em admirá-lo à distância, por mais que eu insista que a maré está baixa e não há ondas. Espero não compartilhar desse medo algum dia. Com minha mãe, aprendi a amar a beleza suprema das coisas prosaicas: os finais de tarde na praia, os pés tomados pela espuma, o espanto da lua se projetando acima do horizonte, como um ovo posto pela noite.
Mais um Noturno de Chopin passeia pelos meus ouvidos. Uma sensação de enlevo, como se encostasse a orelha numa concha, dessas que evocam o barulho do oceano. A tela em branco não é mais uma onda gigante em formação. Ela já arrebentou e me encharcou de reminiscências agradáveis que despejo aqui, como se eu mesmo fosse uma onda. Ah, o mar bravio de Caymmi, para quem é doce morrer no mar. O mar de Banville, movido a perdas do passado. O mar de Pessoa, feito de lágrimas de Portugal, a espelhar o céu.
Ou ainda o mar de Kazantzakis em Zorba, o Grego: “O mar, a doçura do outono, ilhas banhadas de luz, véu diáfano de garoa miúda que cobria a nudez imortal da Grécia. Feliz, pensei eu, do homem a quem o destino permitiu, antes da morte, navegar no mar Egeu. São muitos os prazeres desse mundo – as mulheres, as frutas, as ideias. Mas singrar esses mares, num outono suave, murmurando o nome de cada ilha – não há, estou certo, alegria maior que possa mergulhar o coração do homem no paraíso.”
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