Esse “escândalo dos sertanejos” não me surpreende em nada. Pelo contrário, reafirma a antipatia que nutro há anos. Nunca consegui, nem por um minuto, ir com a cara de nenhuma dupla dessas. Não suporto o estilo. Esse breganejo ou sei lá como é que chama. Esse negócio que você sabe do que que eu tô falando. Esse dos relatos de cornos, do “chifre no asfalto”, da adoração à cachaça e do público fanatíssimo. Tenho horror absoluto. Ao ambiente, às roupas, às melodias, a tudo. Coisa delicada de dizer, atualmente. É que o pessoal gosta de rebater confundindo reserva estética com arrogância intelectual e preconceito social. Só que isso é bem desonesto e não cola aqui.
Zeca Pagodinho é de Xerém. Carlinhos Brown é do Candeal Pequeno. Elza Soares era do Planeta Fome. Criolo é do Grajaú. Luedji Luna nasceu no Cabula e cresceu em Brotas. Não tem lugar dito “nobre” na lista, assim como nos endereços de origem de tantos outros nomes divinos e maravilhosos. Ou seja, a relevância da produção cultural e artística em nossas periferias, cidades do interior, bairros menos abastados e comunidades é a regra, na real.
Procure saber o que são as peças de cerâmica em Maragogipinho, o encantamento do samba de roda de Cachoeira, a beleza acachapante do maracatu rural na Zona da Mata pernambucana, só citando mais três coisas que são dos meus dengos e passaram aqui na cabeça. Mas o rol é imenso, nem sei se finito, e continua com os grafites de Castelo Branco, a leveza do “passinho” do subúrbio carioca, a comida dos tabuleiros da Bahia, nossos blocos afro, Dona Onete e todo o Pará dentro dela. Tudo lindo, nem tudo “intelectualmente sofisticado” e minha cabeça nem tem essa “sofisticação” toda também.
Seguindo os pontos, se desenha um mapa mental de belezas vivas e nem o meu conhecimento limitado das entranhas do Brasil me impede de perceber o óbvio: se você quer produção artística com riqueza , qualidade e pulsação, vai achar bem mais fácil em “rotas alternativas”, no real sentido de “popular”, do que no mainstream das classes média e alta deste país. A arte relativa e pertencente ao povo é isso aí. E linda.
Então, não é preconceito social, confere? Nem arrogância intelectual. Pelo menos, não pra mim. É apenas a constatação diária de que “a crise é estética”, como cravou, se não me engano, o jornalista Bruno Torturra, há anos. Essa crise atinge a todos. Tudo começou quando um número cada vez maior de brasileiros – de todas as classes sociais – passou a achar bonito dançar e cantar ao som de coisas como “a muriçoca pica, pica e soca, soca”. Cito isso, que não sei nem de quem é (nem quero saber) porque foi meu marco zero. Foi nesse dia que pensei “tamos na merda”, ouvindo, acidentalmente, esse negócio, em volume altíssimo, enquanto andava nas ruas de certa cidade do interior da Bahia.
Não tô reclamando de picâncias não, que puritanismo você não vai encontrar em mim. Tenho até minha playlist de MEB (Música Erótica Brasileira) que abre com Avassaladora. Gonzaguinha, conhece isso? Vou botar em QR code e link. Escute alto e suba pelas paredes. Não é moleza. Inclusive, em meus folguedos a dois, utilizada do jeito certo, nunca falhou. Dance isso com seu alvo, devagarinho, à meia luz e dê só uma roçadinha de rosto que você vai ver. Mas, dispersei. Crendeuspai. Já tinha até largado o texto e tava escutando Simone cantando Paixão, eu toda cheia de pensamentos que, agora, não vem ao caso. Voltemos.
Empobrecimento estético, esse é o ponto. O que eu não sei é se é sintoma ou a própria doença, mas que a bruma do mau gosto baixou sobre o território brasileiro é fato incontestabilíssimo. Passamos a construir “igrejas” que parecem delegacias, a fazer esses apartamentos só na cor bege e outras parecidas, a triplicar os tamanhos dos beiços, a desenhar essas sobrancelhas da Nike e a “louvar” com uma cafonice jamais vista na história deste país.
Até profanar, que era um negócio bonito e alegre, virou um depressivo “senta, senta, senta”, pra dizer o mínimo. Homogeneizamos nisso, que é o que assusta, porque feiúras e belezas sempre coexistiram e essa é até parte divertida da vida. Já escutaram as músicas mais ouvidas, nas capitais brasileiras, nas listas do Spotify? Eu fiz esse exercício. Dá vontade de chorar pela constatação da idiotia predominante e coletiva.
Vive em mendicância estética um povo que, predominantemente, consome aquilo. O que não seria tão preocupante se a estética fosse uma dimensão estanque do humano. Mas a gente sabe (você sabe, né?) que não é assim. A capacidade de se emocionar diante do belo, de buscar o original, de utilizar o próprio idioma de forma criativa, de manifestar conteúdos por meio da arte, tudo isso quer dizer humanidade. Tudo isso faz parte do conjunto de habilidades e características que nos distanciam, em termos evolutivos, de uma ancylostoma duodenal. Por exemplo. Nesse pacote também está, e em retroalimentação, o bendito senso crítico.
(De acordo com o dicionário Aurélio, senso crítico é a “capacidade de analisar, refletir ou buscar informações antes de tirar uma conclusão. É a tendência de quem não aceita automaticamente o que lhe é dito ou imposto”.)
É como se tivessem passado uma patrol em nossa subjetividade. Tá tudo nivelado. Por baixo. Na derrocada estética, vai embora, também, a noção do ridículo. Um dos possíveis resultados individuais é a pessoa acabar vivendo num cenário de imitação do Texas (olhe que o original já não presta), entre chifres e gritos desafinados, achando tudo bonito. Tão grave quanto isso, imaginando que centenas de pessoas saem do nada, dão dois gritos em dupla (um grita grosso e o outro grita fino), contam três cornos que tomaram e viram ídolos milionários, de forma honestíssima. Pra acreditar nos Cinderelos sertanejos, o vivente é mal intencionado, ou não passa mesmo de um nematelminto.
Perdoados os nematelmintos por incapacidade estrutural, você, que ainda pensa nem que seja um tiquim, sabia sim. Tava foi seduzido e sonhando o mesmo pra você, achando bonito. Precisei só assistir a partes de umas duas lives pra entender que o ambiente desse tal “sertanejo” é tão idôneo quanto qualquer pirâmide financeira divulgada em perfil roubado do Instagram. Daquelas em que, pela mesma mendicância estética/crítica – talvez turbinada por certa desonestidade intrínseca – você periga cair. Soft power do agronegócio, ocupação paga de território simbólico, popularização de determinados modos e costumes. Ponto. É isso.
Dinheiro não jorra do nada, saiba. Nem vem (só) de bilheteria. Trabalho honesto não deixa ninguém milionário da noite pro dia. Um produto ruim (é o caso, sem meias palavras) não domina o mercado por obra e graça do divino. Tente Belchior, em altas doses. Um pouco de Paco de Lucia. Elza Soares no talo, pra a vizinhança toda ouvir. Gilberto Gil, logo de manhã. Caetano, Gal, Bethânia. Muito Chico Buarque de Holanda. Moraes Moreira, um pouquinho a cada dia. Tratamento de choque para cérebros em UTI. Corrupção é cafona. A cafonice corrompe. Perceba de uma vez por todas: a crise é estética, sim.