Produções ganham versões em áudio e resgatam narrativa que chegou ao Brasil há 80 anos
Há 80 anos, em junho de 1941, ia ao ar “Em Busca da Felicidade”, primeira radionovela produzida para o rádio brasileiro. O original cubano, de Leandro Blanco, ganhou adaptação tupiniquim de Gilberto Martins e de cara arrebatou os ouvidos e, principalmente, o interesse dos ouvintes de todo o país. “Ela foi ao ar pela manhã, que, desde então, virou o horário nobre do rádio. O sucesso foi tão grande na época que a novela foi prolongada e ficou dois anos no ar. Inspirados nas ‘soap operas’ norte-americanas, ‘Em Busca da Felicidade’ veio para fidelizar a audiência feminina no rádio e popularizar ainda mais o veículo”, explica Thiago Regotto, gerente de Rádio da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC).
Para celebrar a efeméride, a EBC recriou uma cena da antológica produção no Museu da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, em uma parceria entre a rádio Nacional do Rio e a TV Brasil. A gravação está disponível no YouTube e nas redes sociais da empresa. Thiago explica que a ideia da remontagem era um dever. “Esta novela faz parte da nossa história e da história do país. Tínhamos duplamente a obrigação de fazer esse resgate. A radionovela começou há exatos 80 anos, no estúdio da rádio Nacional do Rio de Janeiro. O roteiro original está preservado no nosso acervo. Temos o estúdio original de radionovela preservado. Tínhamos tudo para fazer essa ação, e a direção da EBC entendeu que, pelo apelo que o tema tem, tínhamos que gravar a cena para todas as plataformas da empresa”, frisa.
O jornalista conta que o que mais o impressiona no roteiro dessa radionovela é perceber a mudança de ritmo da história, até mesmo com seu prolongamento, devido ao sucesso. “Você percebe as cenas com um tempo diferente a cada capítulo. Ela foi ao ar em um tempo em que a comunicação não era tão rápida, mas o rádio estava sempre em conexão com o ouvinte. Uma troca!”, destaca ele, lembrando que, infelizmente, não há registro sonoro da radionovela original. “Nos anos 1940 o rádio era todo ao vivo, e o acervo era guardado em discos de vidro, que se perderam com o tempo”, esclarece.
“Em Busca de Felicidade” também marcou o começo da trajetória das novelas no Brasil, gênero que se tornou uma das paixões nacionais, como frisa Thiago Regotto. “Ela cria a base da novela no país, que depois foi levada para a TV. Nos EUA, a TV veio do cinema. No Brasil, a TV veio do rádio. Podemos ver isso não apenas com as novelas, mas programas de auditório, humorísticos, jornalismo e esporte. A novela dialoga com histórias de vida. E coloca o público, seja no rádio ou na TV, no desenrolar daquela trama. Se não tiver envolvimento, não tem novela. Novela tem paixão”, opina.
Resgate
O mais curioso é que, após oito décadas, um velho novo hábito tem despontado entre os brasileiros. A dramaturgia para ouvir e, principalmente, sentir. Grupos de teatro e serviços de streaming têm investido em projetos com formato de áudio, como audionovelas, audiosséries e até peças radiofônicas. Este é o caso da Trupe a Torto e a Direito, da UFMG, projeto de extensão da Faculdade de Direito com o Teatro Universitário. “Uma viagem com os olhos da imaginação” é o que propõe o grupo com a radionovela “Histórias que a Rua Conta”, que traz relatos reais de moradores em situação de rua e que está disponível no Spotify.
O dramaturgo Fernando Limoeiro, coordenador da trupe, explica que a ideia surgiu porque precisava manter os integrantes ativos nestes tempos de pandemia e decidiram inovar. “A gente sempre desenvolveu um teatro de mobilização social usando a arte popular brasileira, e aí decidimos experimentar e investir nessa coisa do radioteatro. São pequenos casos do cotidiano em forma de novela”, revela ele, ressaltando que o desafio foi grande. “Tudo é diferente. A interpretação é em cima da palavra, como era no rádio antigamente. Não tem corpo, não tem figurino. Tudo tem que ser em cima da palavra; o clima, a emoção”, frisa.
A dramaturgia coube a uma das integrantes da trupe, Mileide Moura, que ainda contou com a colaboração do próprio Fernando Limoeiro e dos demais companheiros da iniciativa: Alice Cabral, Léo Azevedo e Sol Markes. “O teatro é a arte do encontro, então a gente teve que se readaptar. Eu já tinha alguma experiência em escrever textos, mas nada parecido com isso. A gente tem que valorizar os sons, e não as imagens. É interessante que, na apresentação presencial, cada dia é um dia diferente, mesmo sendo a mesma peça, mas com o áudio, não. Gravou e é aquilo ali. Você tem que estar bem concentrado. Mas, de maneira geral, foi muito bacana. E o retorno das pessoas tem sido bem legal”, celebra ela, que na radionovela ganhou o nome artístico de Mileide Montenegro.
Também do grupo, a atriz Sol Markes, que na história virou Sol Raia, comentou de que maneira a experiência foi provocadora em todos os sentidos, sobretudo pelo fato de ter sido gestada durante a pandemia. “Só de estar isolada dentro de casa faz com que a gente explore outras possibilidades. E, sendo uma radionovela, isso amplia ainda mais. Estamos fora da nossa zona de conforto. A gente vai gravar as cenas, e tem as interferências externas, como o cachorro latindo, o carro da pamonha; tem que ficar atento a tudo. Todo recurso sonoro tem peso. Mas no fim das contas conseguimos criar esse novo caminho sonoro e temático, que deve gerar outros projetos”, comenta.
Spotify
No ano passado, o Spotify, serviço de streaming de música, podcast e vídeo, decidiu investir no gênero e lançou “Sofia”, sua primeira audiossérie de ficção, com roteiro em formato de podcast. Sofia, papel de Cris Vianna, é a assistente virtual mais intuitiva do mundo. A trama ainda traz no elenco Monica Iozzi, Otaviano Costa e Hugo Bonemer. E pelo visto a empresa gostou do formato e lança no dia 22 de julho mais uma audiossérie original, “Paciente 63”, que traz a envolvente história sobre uma psiquiatra e seu misterioso paciente. A produção conta com as vozes protagonistas de Seu Jorge e Mel Lisboa.
“Um brinde à imaginação”’
Um espetáculo que nasceu para ser encenado nos palcos se transformou em um filme e agora vai virar a primeira experiência radiofônica do Grupo Galpão. “Quer Ver Escuta” estreia hoje à noite pelas ondas da rádio Inconfidência. A peça, que tem a poesia contemporânea como fio condutor, é resultado de experimentos sonoros realizados, nos últimos meses, pelos atores e atrizes do grupo, sob direção de Marcelo Castro e Vinícius de Souza.
“Com a pandemia, o processo foi sendo modificado e migrando de uma linguagem para outra, mas sempre mantendo como norte a poesia. A ideia de ir para o áudio foi dos diretores, que sugeriram a gente mergulhar nesse campo da escuta e para que cada ator prestasse atenção nas paisagens sonoras que circundam nossa vida”, relata a atriz Inês Peixoto. No projeto, que mescla ficção e documentário, e que tem sido chamado pelo Galpão de “teatro para os ouvidos”, o ouvinte é convidado a adentrar histórias e situações, por meio de sons, ruídos, músicas, palavras e silêncios.
Inês ressalta que sempre foi fascinada pela linguagem do rádio e acredita que essa nova onda de produções em áudio se deve a uma banalização e a uma saturação imagética. “Os nomes podem ser diferentes. Podcast, audiossérie, audionovela, mas a origem é bem parecida com a da radionovela, com a sonoridade que traz essa narrativa. Acho que as pessoas estão um pouco cansadas de tantas imagens e querem se voltar para outras coisas. A experiência radiofônica te convida a uma imersão nas suas paisagens internas, e, dessa forma, a gente vai construindo algo. ‘Quer Ver Escuta’ é um brinde à imaginação”, resume.
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