Judoca brasileiro contraiu Covid-19 poucos meses antes de embarcar para o Japão e dedicou a vitória que rendeu o bronze à mãe e à sensei
Ser um atleta olímpico é o sonho de todo esportista. Poder representar o país em uma Olimpíada, subir ao pódio, carregar o peso de uma medalha. Ouvir o seu hino nacional ecoar pelo ginásio, arena ou estádio. No entanto, o caminho até a realização, muitas vezes, é sinuoso e demanda muita resiliência.
Daniel Cargnin, bronze no judô até 66kg aos 23 anos. Cinco lutas o colocaram na mesma rota da medalha de bronze nos jogos olímpicos de Tóquio. Mas, antes, dor, persistência, uma quase desistência e Covid fizeram parte do ciclo olímpico do gaúcho de Porto Alegre. Em entrevista ao Jornal O Tempo, o judoca brasileiro contou como foi a preparação para as Olimpíadas, como tudo aconteceu por lá e o como será o próximo ciclo olímpico.
P: Até a sua adolescência, você praticava judô e também era lateral-direito das escolinhas de futebol do Grêmio. Quando você decidiu largar de vez e seguir no caminho da luta?
D: Era um sonho meu e da minha mãe porque era algo que a gente fazia junto. Eu acabei decidindo por seguir no judô por ser algo que estava diretamente relacionado a nós dois, que ela também praticava, então esse lado familiar me envolveu mais e fez com que eu optasse por deixar o futebol para poder seguir no judô. O apoio da minha mãe foi muito importante, a gente sabia que para eu conseguir crescer, eu precisaria ir para uma equipe grande e ela correu atrás desse sonho comigo, tanto que tenho uma tatuagem no peito escrito família porque o apoio da minha mãe foi muito importante para que eu conseguisse chegar onde cheguei e ganhar essa medalha.
P: Você teve uma rápida ascensão à seleção brasileira de judô, quando você entendeu que já estava consolidado entre os atletas e que poderia existir uma chance de você disputar os jogos Olímpicos?
D: Eu fiquei em quinto lugar no mundial de adultos em 2017 e eu pensei: “poxa, na minha primeira vez e eu consegui brigar por medalha, isso quer dizer alguma coisa, eu não atoa até esse lugar”. Ali eu fui vendo que o sonho das Olimpíadas não era algo que estava tão longe assim mais, sabe?
P: Mas uns meses antes de começar os Jogos, você teve COVID e ficou fora do Campeonato Mundial em Budapeste. O que passou na sua cabeça naquele momento? Você achou que não conseguiria ir? Que não chegaria na sua melhor forma física por lá?
D: A gente precisava fazer os testes e quando veio o resultado, veio positivo, eu fiquei desesperado até tentei pagar para fazer de novo, mas o pessoal falou que realmente não dava, que eu tinha que aceitar. Foi muito difícil porque eu ficava daqui vendo a competição e pensando que poderia estar lá. Durante todo o ano eu fui cabeça de chave nas competições, estive entre os oito primeiros do mundo e exatamente nessa competição eu era o nono, estava a uma posição de ser cabeça de chave, mas por conta da Covid, não pude participar. Meu pai chegou para mim e disse que tudo acontecia por uma razão e que aquilo tinha acontecido porque tinha que acontecer e isso me ajudou muito a ficar mais tranquilo, a entender que se fosse para vir a convocação (para as Olimpíadas), isso aconteceria.
P: E como aconteceu a convocação para defender o Brasil no Japão?
D: Eu já sentia, sabe? Mas eu sou do tipo de pessoa que não gosta de falar para ninguém antes que realmente aconteça para não criar expectativa. Todo mundo ficava: “ah, Dani, já é certeza que você vai”, eu sabia, na minha cabeça eu sabia, mas a confirmação veio um mês antes. Eu, particularmente, acho pouco tempo porque até meses antes de começar (os jogos olímpicos) aqui no Brasil ainda tem competição interna, o pessoal do peso pesado mesmo, um mês antes, ainda estavam brigando internamente em competição para saber quem ia. Eu acho isso um pouco complicado porque você não tem muito tempo para focar.
P: Mesmo com pouco tempo, como acontece a preparação mental de um atleta que vai participar dos jogos olímpicos? Como foi esse ciclo olímpico mais curto? Ainda mais em uma edição tão diferente por conta de tudo que está acontecendo ao redor do mundo…
D: Pra mim foi muito complicado porque eu me lesionei, fraturei a costela, tive distensão do músculo da coxa, então, eu já estava realizado só de ser convocado, ser um atleta olímpico. Eu já sabia que isso era para poucos, não é todo mundo que consegue. Eu queria lutar uma luta para poder contar para os meus netos que eu disputei uma olimpíada. Eu falei que não prometia voltar com uma medalha, mas pensava “por que não eu?”, “por que eu não posso estar num daqueles lugares no pódio?” Nada é impossível, eu consegui, tive muita resiliência, mas já estava feliz só de ir competir, era o meu sonho.
P: Essa edição das Olimpíadas, todos nós já sabíamos que seria diferente por conta da pandemia e tudo que implicou, mas como foi para vocês atletas que estavam lá?
D: Foi a primeira vez que eu tive contato com muita gente e achei estranho, não vou negar. Eu fiquei muito tempo sozinho durante essa época da pandemia, então foi diferente ter contato com muitas pessoas, mas foi legal porque o brasileiro é diferente, né? A gente entrava no elevador, por exemplo, na Vila Olímpica e aí entravam outros atletas, brasileiros mesmo, mas de outras modalidades e eles falavam: “Você é o Daniel do judô não é?”, eu respondia: “Sim, sou eu” e eles ficavam: “Eu vi sua luta ontem, parabéns, você foi incrível”. Eu até comentei com o Rafael que estava dividindo o quarto comigo. Foi diferente.
P: A experiência de lutar em um ginásio vazio, sem torcida, como foi? É muito diferente?
D: Eu tinha o sonho de lutar com a torcida brasileira ao redor, cheio de gente fazendo barulho, com a minha mãe torcendo por mim, gritando. Ela já estava com tudo preparado, com hotel reservado, já estava olhando as entradas para as lutas, tinha deixado mesmo só a passagem de avião para comprar mais perto, mas infelizmente não deu, mas eu sei que aqui do Brasil, a cada golpe que eu dava, ela estava com a mão empurrando e me ajudando a derrubar os adversários.
P: E com a ausência de barulho você conseguia focar mais? Se concentrar? O que passava na sua cabeça no momento que você estava lutando?
D: O pessoal brinca que eu penso muito (risos). Durante a luta eu estou pensando no que tenho que fazer e é verdade. Eu acho que esse foco é muito importante, eu estava muito concentrado. Durante a competição, outros judocas brasileiros falavam as coisas comigo, eu sabia que tinha alguém dizendo alguma coisa, mas eu não conseguia entender porque eu focava totalmente na luta e não tirava a concentração daquilo e isso foi muito importante para eu conseguir a medalha. Todos os adversários que eu enfrentei lá, eu já tinha lutado contra eles, então, em cada um, eu ia lembrando do que aconteceu e inventando uma historinha: “Esse eu venci quando valia medalha, então ele lembra disso” e eu fui trabalhando isso na minha cabeça, se essas histórinhas aconteceram de verdade com eles, eu não sei, mas para mim funcionou (risos).
P: Você chorou bastante quando a luta acabou e em entrevista dedicou a conquista à sua sensei. Qual foi a importância dela nessa conquista?
D: Passou tudo como um filme na minha cabeça. Teve uma época que eu estava treinando e você podia chegar para lutar comigo que eu ia perder, qualquer um que me enfrentasse ia ganhar de mim. E num desses dias, eu fui para o chuveiro, eu lembro bem disso porque eu não sou um cara de chorar, sabe? Eu fui para o chuveiro e chorei, não sei se era de tristeza ou de raiva, mas eu olhava para os meus braços e não entendia o que estava acontecendo, porque eu estava daquele jeito e depois eu fiquei com vergonha de voltar para o tatame e ela comigo que no dia seguinte, ela queria que eu chegasse quinze minutos mais cedo para conversar comigo. Eu até questionava: “mas por que só eu tenho que chegar mais cedo?” e ela falava que era porque queria conversar comigo. Eu estava desistindo de mim e ela lá, todos os dias, acreditando que eu era capaz e depois eu percebi isso, poxa, se nem eu acreditava em mim mais, como ela continuou acreditando, tendo certeza que eu conseguiria? Eu falo que essa não é uma história engraçada, mas que para mim significa muito e eu vou lembrar pra sempre.
P: A volta pra casa, como foi? Medalhista olímpico, uma realidade totalmente diferente de quando você entrou no avião…
D: Primeiro eu cheguei no Rio (de Janeiro), mas para mim o mais especial foi quando eu cheguei em Porto Alegre, a gente (ele e a judoca Mayra Aguiar) desfilou no carro do corpo de bombeiros, tinha gente do 20º andar do prédio balançando a bandeira do Brasil e, pelo menos a gente do judô, não está acostumado com essas coisas, com mídia, tudo isso. Foi muito especial. Eu fiz questão de agradecer pessoalmente as pessoas que estiveram comigo nesse tempo, eu acho que…Não era por obrigação, mas eu precisava fazer isso, sabe? Eu tento ser uma pessoa melhor todos os dias e eles foram muito importantes na minha conquista, então, eu precisava ir em um por um e agradecer por tudo que eles fizeram por mim.
P: O próximo ciclo olímpico vai ser mais curto, mas agora eu sei que você vai curtir umas férias! O que você pretende fazer?
D: Então, eu não vejo o aeroporto sem ligar diretamente à perda de peso porque todas as vezes que estive em um, o judô estava relacionado muito forte, era para competir. Eu nunca viajei assim a passeio, então eu vou me permitir fazer isso nessas férias, tirar uns dias para descansar. Ainda estou agradecendo as pessoas que fizeram parte de todo esse sonho, mas vou descansar de verdade. Das outras vezes eu falava, mas acabava fazendo alguma coisa porque eu sempre estive ligado ao esporte, a atividade física. Eu falava que ia ficar descansando e no outro dia, alguém vinha aqui e me chamava e eu já estava na rua fazendo algo. Eu vou retomar passo a passo, competição a competição, não vou pensar direto já na próxima olimpíada porque não é por aí o caminho, vou pensar nas competições que vão vir e quando eu sentir que o brilho no olho de estar em uns jogos olímpicos estiver de volta, ai eu vou saber que o momento chegou. Como eu disse, não prometo outra medalha, mas prometo que vou dar o meu melhor de novo.
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