Cunhã trazia o corpo embriagado em êxtase de três dias de alegria, dança, canto e transe de fumo e caxiri, em sagração às sementes de algodão.
Eram muitos os deveres das cunhãs, como o preparo das bebidas cerimoniais, que começava pela mastigação da mandioca em toda uma avançadíssima ciência e técnica de fermentação, até que se convertessem em apurado cauim de caju, ananás, jenipapo ou tantas outras frutas.
Eram elas também, as cunhãs, as artesãs de todos os utensílios, desde as varetas que forjavam o fogo, os moquéns, as trempes de pedras ardentes e os tipitis de palha que prensavam a rainha mandioca, até as iapunas – fornalhas de barro para torrá-la – e as pás com as quais manipulavam habilmente a mandioca ralada para que não criasse grumos, ao mesmo tempo em que moderavam o fogo para não queimar a farinha, preciosa camada primitiva da alimentação brasileira, que para Cunhã era conduto pra tudo.
A farinha do mingau, da farofa, do beiju, do pirão – pajem de suas obras-primas, que eram os assados de peixe e carne – ora moqueados para maior conservação, ora chamuscados ou ligeiramente fogueados em espetos fincados ao chão de fogo ao ponto sangrento (o malpassado é indígena).
(Foto: Kátia Najara) |
E foi nesse estado inebriante de corpo em festa que Cunhã avistou pela primeira vez, entre gritos de estranhamento e alucinação de sua tribo, as naus alienígenas que traziam o povo branco.
Atraída para a casa branca pelo encantamento de pequenos espelhos, apetrechos, penduricalhos e bugiganguinhas de iludir, Cunhã logo foi considerada inapta ao convívio em ambiente doméstico colonial, pois selvagem e rude demais, não só para os padrões europeus, mas também pelas mucamas e bás africanas, que viam as cunhãs como rivais. E por mostrarem-se melhores cozinheiras, assimilando o gosto do português e adaptando os produtos locais ao encaixe de seu paladar, as mucamas acabaram por provar que eram mais úteis e prestativas, afastando as cunhãs, declaradas como sem préstimo para as suas senhoras.
E de fato as cunhãs cuspiram fora sem cerimônia todos os mais finos pitéus portugueses: pão de trigo, confeitos, fartéis, figos passados, massas d’ovos, peixes cozidos, vinhos de uvas. Tudo lançavam fora defendendo natural, obstinada e instintivamente o tradicionalismo do seu paladar, e não se dissolveram – como o desnecessário sal e açúcar portugueses – naquele processo de aculturação, como foram obrigadas as irmãs africanas.
E como também os portugueses em nada se apeteceram do regime nutricionista tupiniquim – julgando bestiais aqueles aborígenes nus que viviam sem provisões, que só comiam quando sentiam fome as sementes e frutos lançados pelas árvores e o inhame do chão, sem nenhum tipo de condimento; que não trabalhavam, lavravam, cultivavam, mas apenas dançavam e folgavam, vivendo em casas de palha e dormindo em redes – assim foram tangidas (para a sua sorte grande) as cunhãs do convívio doméstico, dissipando-se sertão adentro.
O que não retira de Cunhã o título inegável de primeira cozinheira do Brasil.
*Kátia Najara é cozinheira e empreendedora criativa do @piteu_cozinhafetiva