“Não há crente que não tenha dúvida, nem ateu que não tenha fé. Não há pobre que não tenha dívida, não há rico que tenha o que quer”. O samba chamado “Cataclisma” é de Catoni, um reconhecido compositor da Portela, a maior campeã do Carnaval do Rio de Janeiro, com 22 títulos. Apesar disso, o que muita gente não sabe é que o músico, na verdade, é mineiro de Ouro Preto, cidade da região Central.
Sebastião Vitorino Teixeira dos Santos, o “Catoni”, nasceu no dia 13 de maio de 1930 na cidade histórica. Neto de uma negra escravizada que viveu até os 107 anos, ele era fluente em Nagô (Iorubá), o que teve grande influência em suas músicas, segundo o letrista e parceiro do compositor em cerca de 40 canções, Sérgio Fonseca, de 79 anos.
“Ele falava na Nagô a partir da avó e da mãe. Pouca gente, inclusive, fala sobre isso, mas algumas músicas trazem essa influência. O Catoni era um camarada que tinha uma voz característica. O forte dele era a melodia e o canto, que era bem característico e valorizava as melodias que ele fazia nos sambas”, lembra o orgulhoso colega de composições.
Por volta dos 13 anos, Catoni se mudou para a capital carioca. Ali, viveu com a família na chamada “Estrada do Catonho”, em Jacarepaguá. Na época, a região era “rural” e a família dele vivia em uma área que pertencia a um italiano de sobrenome Catone, o que teria originado o pseudônimo.
“Na Portela, ele (Catoni) andava com uma foice na cintura, era a arma dele. Todo mundo tinha medo dele por causa disso, era um cara muito forte, lembrava um estivador. Mas, apesar disso, era um cara bastante positivo, alegre”, rememora Fonseca.
Também parceiro do músico, Evandro Lima, de 59 anos, é hoje quem toca violão na Velha Guarda da Portela. Segundo ele, o mais impressionante em Catoni era o fato de ele não ter qualquer formação musical teórica.
“Não tinha nenhuma formação acadêmica, era tudo intuitivo. Quando você ouve as músicas dele, vê que são melodias absolutamente ricas, com ideias melódicas perfeitas. Era uma coisa de gênio”, lembra o violonista.
Dos dois tombos à consagração
Sergio Fonseca relembra, com muito bom humor, a história que era contada pelo próprio mineiro sobre o dia de sua entrada para a ala dos compositores, em 1966. Na ocasião, o lendário sambista e presidente da escola, João da Gente, o apresentou a Natal da Portela, bicheiro que teria sido o primeiro a patrocinar uma escola de samba no Rio.
“O João da Gente era muito impertinente, amigo do Natal desde criança, então, ele falava de igual pra igual. No dia, ele chegou com o Catoni e falou: ‘Ô Natal, está aqui um compositor novo para entrar na ala. Vim te comunicar isso’. O Catoni estava com uma sanfona de 8 baixos, que ele tocava, e o Natal olhou aquilo e se perguntou, pois nunca tinha visto um compositor de samba tocando aquilo”, lembra.
“Foi aí que chegou o Manuel Bambambam, um dos primeiros mestres de samba da Portela, que era aquele malandro clássico, que a gente vê nas histórias. Ele veio gingando e deu uma ‘pernada’ no Catoni, que caiu deitado no chão. Nisso, o Manuel já olhou para o Seu Natal e falou: ‘Se ele é compositor, eu não sei, mas batuqueiro eu sei que não é’. O Catoni disse falou que só aconteceu por que não estava esperando, e o Bambambam mandou ele ficar de pé de novo. O malandro andou pra lá, pra cá, e puxou ele outra vez, que tomou outro tombo. Por causa disso o Catoni sempre falava que, para entrar na Portela, ele tomou dois tombos, então qualquer um entrava”, contou, às gargalhadas, o letrista.
Os anos se passaram e, em 1970, foi que Catoni se consagrou na escola. Naquele ano, ele participou, ao lado de Jabolô e Waltenir, da composição do samba-enredo “Lendas e Mistérios da Amazônia”, vencedor do Carnaval daquele ano e que constantemente aparece na lista dos melhores da história do carnaval carioca.
“Ele contava que estava enrolado com a letra, que não saía, até que encontrou o Silas Oliveira e comentou sobre a ideia que tinha, das lágrimas que formavam o rio Amazonas. O Silas fez um comentário e ficou por isso. Mais tarde, quando ele estava meio dormindo, aí o verso vem, que é o fechamento do enredo: ‘A lua apaixonada chorou tanto, que do seu pranto nasceu o rio e o mar'”, lembra Evandro Lima.
A história também é contada pelo próprio compositor no documentário “Um preto velho chamado Catoni”, que pode ser assistido no YouTube.
Nos anos seguintes, Catoni também compôs para outras escolas, como Mocidade Independente e Beija-Flor. Inclusive, foi Anísio Abraão Davi (bicheiro e presidente da Beija-Flor) quem conseguiu para o compositor o cargo de auxiliar de enfermagem no Hospital de Nilópolis, função que o compositor exerceu até sua morte, em agosto de 1999.
Apagamento da história
Nascida e criada na escola de samba Acadêmicos de São Cristóvão, a “Verde e Rosa de Ouro Preto”, no Morro do Veloso, a historiadora Sidnea Francisca dos Santos, de 47 anos, lamenta que pouca gente conheça a história do músico em sua terra natal, apesar da importância de Catoni, que foi gravado por grandes nomes da música brasileira, inclusive, por Paulinho da Viola
“Nos dá vergonha dizer que Ouro Preto não conhece a história dele, que é mais conhecido fora daqui. Só mesmo quem é mais ligado à música sabem quem é ele, que tem essa importância singular na história, mas que é invisibilizado na história da música, exatamente como muita coisa que envolve a presença de pessoas negras em Ouro Preto. Falo com muita tranquilidade que, talvez, se ele fosse um compositor branco, teria o nome estampado em várias ruas, placas de homenagem”, diz a pesquisadora.
Ainda conforme Sidnea, esse “apagamento” da história negra não envolve somente a música, mas todo o protagonismo dos negros e indígenas na história da cidade, apesar dos negros sempre terem um número muito maior que os brancos.
“Essa população majoritariamente negra vai se traduzir nas nossas manifestações culturais. Então, a relação de Ouro Preto não só com carnaval, mas com essa coisa do tambor como um todo, é muito forte. Por mais que eles (africanos) tenham sido arrancados da maneira que foram de seu local de origem, por mais que eles tenham atravessado o Atlântico dessa maneira desumana, eles buscaram formas de resistir aqui. E o canto, a dança, foi uma dessas formas de resistência”, completou a historiadora.