GASTRONOMIA
Como a pinaúna, odiada na praia, virou prato de luxo que custa até R$ 590
Busca pelos ouriços, que são fonte de proteína, tem movimentado um mercado pouco explorado
Publicado em 6 de abril de 2024 às 05:00
Pinaúna, na composição do chef José Morchon Crédito: Marina Silva/CORREIO
Às segundas, pescadores da Colônia do Rio Vermelho têm o hábito de montar uma fogueira, sobre a qual braseiam frutos do mar. Certo dia, o chef de um restaurante espanhol do bairro visitou um desses encontros e se admirou com o cardápio: pinaúnas, aqueles ouriços pretos e espinhosos que apresentam o inferno a quem pisa neles.
Só que ninguém ali sofria. Os pescadores pingavam limão sobre as ovas laranjas, uma atrás da outra, e engoliam com cachaça. Naquele dia mesmo o estrangeiro encomendou pinaúnas para vender no restaurante dele.
O interesse pelas pinaúnas, desde então, só cresceu. Hoje, elas são parte do menu de, ao menos, cinco restaurantes de alta gastronomia de Salvador. Não é lá uma novidade para famílias mais pobres que vivem às margens do mar especialmente entre Salvador e o Recôncavo baiano.
A incorporação ao mercado do luxo, no entanto, gera um novo ciclo para esse ouriço. Fora do Brasil, em especial na culinária japonesa e também mediterrânea, ela já é uma iguaria cara. Um pote de 400 gramas de suas ovas é vendido em mercearias por quase R$600.
“Para mim, sempre foi comum comer, estranhei foi ter alguém pedindo”, diz Antônio Pereira, 64 anos, o pescador de pele preta e cabelo rastafári grisalho que buscou as pinaúnas para o espanhol e que viria a abastecer três restaurantes de luxo da vizinhança.
Pelo menos duas vezes por semana, Antônio, que comia pinaúna desde a infância com os 10 irmãos, se distancia da Praia do Rio Vermelho em busca dos ouriços redondos, com diâmetro de até 15 centímetros.
Ele mergulha a até oito metros para evitar pegar as pinaúnas que ficam na beira do mar e ficam mais sujas, pela poluição das águas. No trabalho, ele não usa nem roupa de mergulho — que custa até R$ 1,8 mil —, nem equipamentos de respiração.
Para evitar a violência dos espinhos, uma luta perdida como se vê pelos dedos manchados de preto e que já infeccionaram várias vezes, o pescador tira as pinaúnas das pedras por um arco de metal.
Depois de uma hora no mar, lá vem Antônio com um saco com 80 bolinhas pretas, que é vendido por R$ 100.
A maioria delas é mais gordinha, cheia de ovas, como desejam os compradores. Embora haja pinaúnas no mar o ano inteiro, o período entre janeiro e abril é o melhor para encontrá-las nesse estado de suculência e fertilidade.
É quando há mais sargaço no mar, algas que alimentam espécies marinhas, e acontece o pico reprodutivo da pinaúna.
Antônio, o pescador das pinaúnas Crédito: Marina Silva/CORREIO
Como a pinaúna ganhou o mercado de luxo
O chef que visitou a colônia do Rio Vermelho, naquela farra dos pescadores há quatro anos, era José Morchon. O espanhol fundou em 2011 o La Taperia, especializado em tapas, e gosta de estar atento aos movimentos do bairro.
“O gringo se atreve a comer?”, brincavam os pescadores sem saber que, desde criança, José comia pinaúnas partidas ao meio, como se faz com as ostras na Bahia.
A única diferença era o nome: na Bahia, esse ouriço foi nomeado no tupi-guarani com o significado de “farpa preta”.
José, chef do La Taperia, prepara as pinaúnas Crédito: Marina Silva/CORREIO
Aos poucos, a pinaúna ganhou mais espaço no cardápio d’A Taperia. Virou o recheio de um croquete, o complemento de um palmito assado e o tempero do molho de um peixe. Até já foi em uma paella.
O principal cuidado é com a conservação. Fora do congelador, as pinaúnas duram dois dias. “É um produto fantástico, ela traz um potencial de sabores até para outros pratos”, justifica José sobre o sucesso mais recente do ouriço do mar.
O croquete é um dos pratos mais servidos da casa. “Elas vêm sempre gordinhas, gosto assim. Não adianta abrir a pinaúna pequena e ter pouca carne”, recomenda o chef.
Assadas, as ovas da pinaúna se misturam, endurecem e são tiradas de colher da casca. Os espinhos, por sua vez, caem. Lembra o gosto de um aratu. Cruas, elas remetem ao caviar, as ovas extraídas do peixe esturjão.
Em qualquer versão, a pinaúna salga o hálito, como quando se engole, sem querer, água do mar e o sal demora na boca. Há, contudo, uma doçura no fundo que equilibra tudo.
O sucesso do ouriço
O principal comprador de pinaúna do Rio Vermelho é o restaurante Manga. Os chefs e donos, Dante e Katrin Bassi, encomendam os ouriços duas vezes por semana a Antônio.
O casal, ele brasileiro e ela alemã, acumula prêmios gastronômicos pelo mundo e cozinhou, na semana passada em Brasília, o almoço realizado pelo governo federal em homenagem ao presidente francês Emmanuel Macron.
Os chefs chegaram a sugerir pinaúnas no cardápio. Não deu muito certo. Como havia 200 convidados no evento, os ouriços crus poderiam demorar na mesa e perder o frescor. Aí, venceram os populares camarão e o robalo.
Dante e Kafe Bassi, chefs de mangá Crédito: Marina Silva/CORREIO
Tem cliente do Manga que também estranha a possibilidade de comer pinaúna. Acha que é venenosa ou faz mal por puro desconhecimento, e pede uma substituição aos chefs.
A comida faz parte do menu degustação do restaurante, composto por 11 etapas que custam R$ 350 sem vinho e R$ 590 com a bebida.
Até estarem no ponto de ser temperadas, acontece um processo de limpeza que começa com o corte do topo dos ouriços. Depois, abertos, eles são mergulhados em um balde de água com gelo e sal.
Entre os frutos do mar preparados lá, são os mais trabalhosos: um saco de 100 pinaúnas demanda até quatro horas de asseio. “Aproveito para pensar na vida”, brinca Dante.
A solução salina limpa as impurezas internas e solidifica as ovas em formato de estrela. Antes disso, elas têm uma aparência meio esparramada.
Passo a passo da limpeza das pinaúnas no restaurante Manga Crédito: Marina Silva/CORREIO